Título: Dois mundos, três cenários
Autor: Goldfajn, Ilan
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/09/2007, Espaço Aberto, p. A2

As notícias nos EUA e no Brasil parecem sair de mundos distintos. Nos EUA, o ambiente de crise financeira está tornando os economistas cada vez mais preocupados com o risco de recessão (ou pelo menos desaceleração). No Brasil, na contramão, o governo baseia seu orçamento em receitas cada vez maiores, para financiar gastos crescentes. E o 3º Congresso do PT, partido do governo, em vez de delinear as reformas que considera necessárias para sustentar um crescimento sustentado, prioriza a revisão do que deu certo no passado: a privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Será possível conciliar esses dois mundos no futuro? Provavelmente, não, mesmo que o Brasil não seja afetado por uma eventual desaceleração da economia norte-americana.

O ambiente nos EUA tem sido mais pesado. O presidente do banco central norte-americano (Fed), em discurso na sexta-feira, descreveu de forma transparente os problemas enfrentados no sistema financeiro e não minimizou os acontecimentos recentes. Disse que as perdas financeiras no mundo foram maiores do que as projeções mais pessimistas dos analistas e que haveria aumentos dos prêmios nos ativos arriscados no mundo. Martin Feldstein, economista de Harvard que teve participação destacada no governo americano na década de 1980 e presidente do NBER (instituto que tem a responsabilidade de identificar as recessões), disse, em discurso recente, que nos EUA, hoje em dia, há um substancial risco de recessão e que quase todas as quedas no mercado de construção residencial - como observamos atualmente - foram seguidas por recessão. Emendou que ficaria mais confortável com juros 1% mais baixos do que os atuais (5,25%), nos EUA.

Para ajudar a delinear a incerteza que cerca o futuro da economia mundial descrevo aqui três cenários possíveis para as economias norte-americana e mundial:

Desaceleração norte-americana - Neste cenário, nos EUA o mercado imobiliário e os preços das casas cairiam ao longo do ano, mas não além do esperado. As condições de crédito para os consumidores piorariam um pouco, fazendo com que reduzissem as compras. Mas a redução do consumo não seria exagerada, dado que os trabalhadores manteriam o seu emprego graças à atual força das empresas. O Fed reduziria os juros, de forma bem gradualista. A desaceleração moderada do PIB seria consistente com a queda recente na produtividade da economia.

No resto do mundo, haveria um certo descolamento temporário dos EUA, principalmente nas economias que crescem baseadas na sua demanda doméstica. A economia da China continuaria impulsionada pela sua alta taxa de investimento, apesar de ser afetada ao longo do tempo com menores exportações para os EUA. Neste cenário, algumas commodities mundiais cairiam, mas não sofreriam alterações muito bruscas.

No Brasil, a projeção de crescimento para este ano se manteria inalterada (4,5% - 5%), mas o crescimento no ano que vem seria menor, em função do impacto da desaceleração mundial nas suas exportações.

Recessão nos EUA, desaceleração no mundo - Neste cenário, nos EUA o mercado imobiliário pioraria muito e o crédito ficaria mais caro. Com isso o consumidor reduziria suas compras substancialmente, dado que haveria queda do emprego ao longo dos meses até o final do ano. O Fed reduziria os juros de forma substancial, o que minimizaria o tamanho e a extensão da recessão (alguns acham que o Fed até poderia evitar este cenário por completo). Neste caso, o descolamento do resto do mundo em relação aos EUA não resistiria. A China desaceleraria em função da queda do seu saldo na balança comercial, apesar da alta taxa de investimento. A Europa desaceleraria também (menos que os EUA, mas mais que a China). As commodities cairiam, afetando a balança comercial do Brasil, que teria um crescimento bem menor no ano que vem. Os fluxos de capital para investimentos também se retrairiam.

A prosperidade continua inabalada - Neste cenário, a crise financeira e os problemas no mercado imobiliário teriam um desfecho melhor que o esperado. O consumidor norte-americano manteria o comportamento dos últimos anos, estimulando o crescimento no mundo. O emprego cresceria a taxas saudáveis nos EUA. O resto do mundo conservaria o ritmo forte de crescimento, assim como o Brasil. O saldo da balança comercial cairia com mais importações, mas o fluxo na conta de capitais continuaria firme.

Hoje não há como descartar nenhum dos cenários acima. Alguns economistas acreditam que os bancos centrais serão capazes de evitar o pior cenário de recessão por meio de cortes nos juros. Mas poucos crêem que o mundo volte a funcionar como antes da crise.

Em suma, há atualmente uma incerteza elevada sobre qual será o cenário futuro para as economias norte-americana e mundial. No Brasil, atua-se como se o único cenário possível fosse a perpetuação da prosperidade dos últimos anos no futuro. Um exemplo é o orçamento do governo para 2008, com um aumento considerável nos gastos (acima do crescimento do PIB), a serem financiados com estimativas de receitas crescentes com base numa carga tributária cada vez maior. Ao mesmo tempo, nota-se pouca disposição política para avançar nas reformas (tributária, previdenciária, limite de gastos, etc.) que serão necessárias para o crescimento sustentado no Brasil em qualquer cenário. Para complementar, indo contra o necessário, somos informados de que o partido do governo quer andar para trás, rediscutir a parte do Brasil que dá certo: as companhias privadas que investem (ao contrário do governo), crescem e geram empregos e divisas para o País. É mole?