Título: O gasto que muda o social
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/09/2007, Notas & Informações, p. A3
O presidente Lula parece incorrer no equívoco muito comum de confundir dois conceitos que se tangenciam ou até mesmo se entrelaçam, mas não são sinônimos: o urgente e o importante. Esse equívoco é notado freqüentemente nos seus pronunciamentos. Na segunda-feira, pela enésima vez, ele celebrou o que entende ser o caráter redentor da política social centrada no Bolsa-Família, polemizou com aqueles que, nas suas palavras, acham ¿que não deveria gastar com pobre¿, mas em infra-estrutura, para concluir que ¿mais importante é a gente dar comida para a parte mais necessitada do povo brasileiro¿.
Não existe um problema de opção. ¿Dar comida¿ é o que de mais imediato e urgente um governo socialmente responsável tem a fazer num país onde 42,5 milhões de pessoas, ou 22% da população, precisam do socorro do poder público para, em última análise, não morrer de fome. Essa é a razão de ser de todo programa de renda mínima, do qual o Bolsa-Família é o mais abrangente da atualidade, alcançando 1 em cada 4 habitantes deste país-continente. Em sentido estrito, portanto, está certo o presidente ao criticar os críticos da decisão de aumentar em cerca de 17%, no próximo ano, o dispêndio federal no que denominou ¿o investimento mais primoroso do mundo, que é o investimento no ser humano¿.
Mas esse investimento, cuja necessidade imperiosa ninguém de bom senso - para não falar em solidariedade humana - haverá de contestar, terá de se perpetuar, girando em falso, sem o investimento essencialmente importante e transformador, do ponto de vista estrutural, por seu potencial de combater a causa primária da esqualidez social que é urgente atacar. E essa causa é o atraso econômico nacional, o crescimento insuficiente para reduzir, pela multiplicação das oportunidades de trabalho, as carências dos brasileiros. Quando o presidente comemora, a justo título, a queda do índice de penúria extrema de 28% para 16% da população e a do índice de pobreza de 52% para 38%, parece alheio a um dado essencial.
Trata-se de um avanço efêmero, ou, para usar um termo corrente, desprovido de sustentabilidade - pois resulta de um gasto assistencial que, por si, não altera a dramática correlação entre desenvolvimento lento, trabalho escasso e serviços públicos de péssima qualidade, ainda mais se vistos do ângulo da capacidade do País de ir além da condição de ¿emergente¿, transitória por definição e da qual quanto mais cedo sairmos melhor. Assim como não se deve confundir urgência e importância, não se deve tomar a nuvem por Juno, imaginando que a fase de relativa bonança da economia nacional merece ser creditada fundamentalmente à gestão Lula - e não a uma excepcional conjunção de fatores externos sobre os quais nem o Planalto nem o setor privado têm controle.
As conquistas do governo, no plano macroeconômico, são inegáveis. Não bastam, porém, para varrer do horizonte a gravidade extrema dos problemas de infra-estrutura que emperram a economia brasileira, à espera da solução - enquanto o presidente canta as glórias da sua política de transferência de renda. Por mais que ele relute em ligar os pontos, é gritante o nexo entre os obstáculos infra-estruturais ao crescimento - que ao governo cabe remover, em vez de apenas prometer removê-los - e a dimensão do contingente que não tem nem terá meios de sobreviver sem a esmola do Estado, enquanto esse quadro persistir. O apagão logístico, que já é uma realidade e tende a se agravar, impedindo que a economia brasileira cresça de forma sustentada, é um breve contra a esperança de ascensão social que o Bolsa-Família, em si, não pode proporcionar.
Quando um caminhão gasta 6 horas - e isso num dia bom - para percorrer 270 km do interior paulista - área mais rica do País - ao Porto de Santos, atravessando o trânsito caótico da cidade de São Paulo, como mostrou ontem este jornal, exemplificando a deseconomia causada pela falta de investimentos em infra-estrutura, fica escancarado o contraste entre as palavras do presidente e as vicissitudes de um sistema de criação de riqueza tolhido por amarras de que não tem como se livrar por conta própria. Pode não parecer para Lula, mas o investimento que favorece a atividade econômica e cria empregos é o mais produtivo ¿investimento no ser humano¿.