Título: CPMF - debate sem foco (2)
Autor: Velloso, Raul
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/09/2007, Economia, p. B2

É notório que a CPMF é um imposto de baixa qualidade do ponto de vista econômico (como, de resto, a maioria dos impostos brasileiros é) e pode ser regressiva, isto é, afetar bem mais os mais pobres. Outro problema é que incentiva a desintermediação financeira, como agora está acontecendo na Argentina, que cobra sua CPMF de 1%, ante nossa alíquota de 0,38%.

Só que, além de simples de cobrar, a CPMF permitiria à Receita Federal checar se as transações de contribuintes são consistentes com a renda a ela declarada. Assim, para as autoridades fazendárias, junta-se a fome com a vontade de comer: é fácil de cobrar, arrecada muito e ninguém vê direito o que está ocorrendo.

É comum argumentar que a extinção da CPMF tirará dinheiro indevidamente da saúde. Outros dizem, ao contrário, que a CPMF não fará tanta falta, pois o governo só aplica parte da arrecadação da CPMF na saúde.

Na verdade, basta deixar de gastar uma parte do dinheiro que entra de um determinado imposto (digamos, da CPMF), que o dinheiro fica parado no caixa (isto é, no Banco Central) e o governo (ou o Banco Central) pode deixar de colocar papéis para 'rolar' juros e nessa mesma magnitude. Fazendo isso, estará implicitamente pagando parcela do serviço da dívida.

Assim, como tudo é fonte de todos os gastos, a briga para reduzir a CPMF não é só com a saúde, mas, sim, com todos os itens, especialmente os de maior peso: Previdência, pessoal e assistência social, que, juntos, consomem 69% da receita líquida de transferências a Estados e municípios, com base em dados de 2006. Isoladamente, todos esses itens abocanham mais do que é gasto em saúde, que leva apenas 7% do total da receita líquida. Além disso, 9% vão para outras despesas correntes (nas áreas de educação, desenvolvimento regional, segurança, agricultura, etc., além de toda a manutenção dos órgãos).

Pasmem: somente 4% vão para investimentos. Ou seja, aqui não tem briga. Finalmente, 11% são destinados ao pagamento do serviço da dívida (que é a parcela conhecida como superávit primário), cuja redução depende da taxa de juros cair, e esta, por sua vez, de anos seguidos de superávits primários elevados.

Não adianta demonstrar, olhando para o futuro, que o aumento da arrecadação exclusive CPMF é superior à própria CPMF e concluir que isso implicaria poder abrir mão desse imposto. O problema é que os gastos correntes (Previdência, pessoal, etc.) têm uma dinâmica própria de crescimento e têm crescido acima do PIB. Entre 2005 e 2006 os gastos não financeiros correntes cresceram nada menos do que R$ 44,2 bilhões, bem acima do crescimento da receita exclusive CPMF. Como resultado, o superávit primário caiu de 2,5% para 2,1% do PIB entre 2005 e 2006, superávit esse que dificilmente poderá cair para além de 1,9% do PIB neste ano. Além disso, os investimentos precisam aumentar minimamente, pois já chegaram no fundo do poço. Aliás, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) está aí para tentar recuperar alguma coisa nessa área.

O fato é que não é fácil abrir mão de receita dessa magnitude num esquema como o nosso, que vem desde a edição da Constituição de 1988, de querer resolver todas as mazelas sociais pelo aumento do gasto corrente ou querer ceder a qualquer pressão de funcionários públicos. O que é preciso ver é que esse esquema leva à redução da taxa de poupança interna e, portanto, à queda do investimento interno, do crescimento do PIB e dos empregos. Ou seja, nada é de graça. Se se quer aumentar de forma desproporcional (como está ocorrendo) o consumo da parcela da população que poupa menos, isso só se fará à custa de queda no crescimento potencial da economia e das oportunidades de emprego. É consumir mais agora em detrimento do crescimento futuro da economia e dos empregos.

Argumenta-se que a redução da CPMF num primeiro momento seria indutora da redução de gastos. O problema é que nenhum governo com um mínimo de força política aceitaria reduzir pura e simplesmente um imposto tão conveniente como a CPMF. Quem garante que, depois, ele terá forças para reduzir o gasto no montante requerido para compensar a queda de arrecadação?

Daí minha idéia de que a proposta de redução da CPMF tem de estar acompanhada de medidas capazes de reduzir o gasto. Assim, o governo poderia dizer: 'Congresso, estão me pressionando para reduzir impostos. Se vocês acham que se deve reduzir a carga, aqui está a solução.'