Título: Ética e profissionalização no serviço público
Autor: Costin, Claudia
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/09/2007, Espaço Aberto, p. A2

Após semanas de desencontro sobre a crise aérea, finalmente um culpado foi apontado: a inépcia das agências reguladoras, personificadas na Anac. O descaso com passageiros, a falta de equipamentos, de preparo ou profissionalismo dos controladores, a corrupção em aluguel de espaços nos aeroportos e, sobretudo, atrasos e falhas no tráfego aéreo parecem, de forma nebulosa, associados a uma invasão de competências por parte da sucessora do Departamento de Aviação Civil.

Evidentemente, não são os relatos oficiais que assim o estabelecem, mas o ataque, prudentemente anteparado por Arlindo Chinaglia, acabou assumindo a forma de uma proposta de reestruturação geral das agências reguladoras. Do processo de seleção (e destituição) de seus dirigentes à lista de suas competências (para alguns, sua própria existência), tudo parecia merecer revisões. Aparentemente, voltamos a uma prática muito conhecida nossa: diante de eventuais falhas de dirigentes, em vez de responsabilizá-los, recriamos instituições, fundamos órgãos novos ou tornamos normas de gestão cada vez mais enrijecidas, donde a quase completa ausência de mecanismos de operação ágeis e competentes da máquina pública. Se o presidente da Anac, sua ex-diretora Denise Abreu - que teria apresentado documento de legalidade discutível para liberar pousos em Congonhas - ou qualquer outro diretor fizeram algo de reprovável, que se utilizem canais administrativos e jurídicos para que respondam por seus atos. Não se culpe o modelo das agências reguladoras por erros éticos e de gestão cometidos por seus titulares. A nomeação de Milton Zuanazzi e Denise Abreu, afinal, se fez por proposta da atual administração.

O importante é ter consciência de que as agências cumprem importante papel numa economia mista como a brasileira. Criadas para garantir a qualidade de serviços públicos concedidos, por um lado, e para possibilitar, por outro, estabilidade de regras aos investidores que traziam recursos de que o Estado não dispunha ou que não queria retirar de políticas sociais relevantes, as agências vieram suprir um vácuo no nosso conjunto de instituições. A Lei Geral de Telecomunicações, editada sob a forte liderança de Sérgio Motta, e a Lei 9.427, que instituiu a Aneel, criaram as condições para que houvesse investimento nesses setores, que iniciavam um processo de sucateamento e, ao mesmo tempo, subordinavam sua atuação reguladora e fiscalizadora às políticas públicas estabelecidas pelo governo federal. Assim, faz muito sentido o que vem dizendo a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, que não cabe às agências formular políticas públicas. Numa democracia federativa, cabe ao governo central, em articulação com unidades subnacionais, propor ao Congresso políticas públicas de âmbito nacional e, se aprovadas, coordenar sua implementação.

O espaço das agências, neste contexto, deve ser o da emissão de atos de regulamentação e fiscalizar empresas públicas e privadas que atuam num segmento afeto a uma política pública. No Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado, editado em 1995, já se diferenciavam três áreas de atuação do Estado que deveriam merecer estratégias distintas do poder público: o núcleo estratégico, em que se formulam políticas públicas e se exercem funções de soberania; o setor de atividades exclusivas de Estado, normalmente associadas ao poder de polícia, como fiscalização, polícia e regulação; e o setor de atividades não exclusivas, em que o poder público atua na implementação de políticas, podendo ter como parceiros organizações do terceiro setor ou mesmo empresas privadas. Assim, as agências, como parte do setor de atividades exclusivas, deveriam contar com servidores públicos de carreira, bem remunerados e selecionados criteriosamente, inclusive para garantir a independência necessária ao exercício de suas funções. Não faz sentido, neste aspecto, funcionários de estatais a serem fiscalizadas povoarem agências reguladoras, como ainda é o caso de algumas delas, ou contratar para elas empregados públicos com um vínculo ao estilo CLT, conforme se tentou fazer até que o Supremo estabelecesse que apenas servidores detentores de cargos públicos estão qualificados para exercer essa função. Nada mais correto. Como contar com agências independentes se os funcionários puderem ser facilmente afastados por suas ações ou decisões?

Esta mesma profissionalização, embora sob outras formas contratuais, deve ser adotada em outros setores em que o Estado atua, diretamente ou em parceria. Os incidentes com o atendimento pelo Sistema Único de Saúde em João Pessoa (PB), dada uma greve (ou seria locaute?) de médicos privados que se recusam a atender pacientes pelo SUS por discordarem do valor da tabela, e o caso de Alagoas, em que corporativismo e política local se unem para pressionar por aumentos salariais de profissionais de saúde do serviço público, revelam falhas de um Estado que teve de cortar custos devido a escolhas passadas equivocadas e a generosidades descabidas e acabou tendo de lidar com fragilidades no processo de qualificação de pessoal para a prestação de serviços públicos. Mas também mostram que a falta de profissionalismo de alguns servidores e médicos contratados pode passar por cima do direito à vida. Culpa apenas deles? Certamente que não. Onde está a lei prevista pela Constituição para regular os limites ao direito de greve dos servidores públicos? Profissionalização no serviço público significa contratar bons profissionais, treiná-los e pagar salários atrativos, mas envolve bem mais do que isso. Requer também ética profissional e responsabilização por resultados.

Claudia Costin, professora do IBMEC-SP e da Universidade de Quebec, foi ministra da Administração Pública e secretária da Cultura do governo do Estado de São Paulo