Título: Economia imune à política?
Autor: Malan, Pedro S.
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/09/2007, Espaço Aberto, p. A2

¿A realidade é uma ilusão, causada por aguda escassez de álcool¿, dizia o quadrinho na parede de um pub irlandês no século passado. Certas práticas e certos discursos políticos brasileiros recentes parecem partir da mesma base, digamos assim, conceitual e filosófica (a realidade como ilusão), ainda que a aguda escassez seja de outra natureza - não de álcool, mas de valores.

Por vezes, parece que, para muitos dentre nós, a dura realidade da vida poderia ser transformada em outra, tida como não menos ¿real¿, se esta fosse ardentemente desejada, e este desejo mil vezes repetido. Para os adeptos da realidade virtual, não há fatos, mas tão-somente versões, como na obra-prima de Kurosawa. E cada versão valeria tanto quanto outra, isto é: nada para uns e tudo para outros, num infindável e pirandelliano assim é se lhe parece.

Em outras palavras, tudo parece ser muito relativo: valores éticos, padrões de comportamento, possibilidades de juízo moral. Tudo é possível quando, como escreveu Montaigne, ¿ninguém acha que delinqüiu mais do que o razoável¿. Pior, quando também se acha que qualquer delinqüência pode ser relegada ao esquecimento porque o resultado de uma eleição conferiria aos eleitos um certificado de absolvição, uma espécie de indulgência plenária por quaisquer delitos e pecados passados.

Segundo esta versão, parcialmente endossada por nosso presidente em seu irado pronunciamento de militante ao Congresso de seu partido no último fim de semana, a voz das urnas é não apenas a voz de Deus, mas a voz de uma instantânea Justiça Maior que se sobrepõe a tudo e torna, do ponto de vista político, caducos e ultrapassados os devidos processos legais em andamento. Guimarães Rosa criou uma expressão extraordinária para esta situação, ao descrever o processo de julgamento de Zé Bebelo pela jagunçagem, quando este último obteve, por sugestão de Riobaldo, a ¿condena de absolvido¿.

O fato é que nosso presidente tem sido politicamente bem-sucedido em ¿condenar à absolvição¿ a si próprio, a seu governo e a seu partido. Notando apenas que há alguns indivíduos que ainda não estão declarados inocentes, mas que também ainda não estão declarados culpados. Portanto, o partido não deveria ter qualquer dúvida em defender os companheiros. E incendiar a militância, ainda que com a aceitação de bizarrices como aprovação de propostas de plebiscito para reestatizar companhias privatizadas, de extinção do Senado e de convocação de Constituinte para decidir reforma política por maioria simples.

Assim, neste último fim de semana, com três anos de antecedência e passados apenas nove meses de segundo mandato, o Congresso do PT deu a partida oficial para a disputa de 2010 - a disputa pela preferência de Lula, que não abrirá mão de tentar fazer seu sucessor. Os candidatos ao favor de Lula são inúmeros - e não apenas no PT. Os próximos anos serão marcados por infindáveis especulações políticas sobre o nome (ou os nomes) dos partidos da chamada base de sustentação política deste governo e sobre o principal ou os principais candidatos da oposição. E também por especulações sobre os planos de Lula para 2014. Juscelino Kubitschek, desde antes de passar a faixa a Quadros no início de 1961, estava ¿lançado¿ para a disputa presidencial, então prevista para 1965.

É possível, e desejável, procurar adotar uma postura, se não positiva, pelo menos não marcada pelo ceticismo. Afinal, o procurador-geral da República, nomeado por Lula, apresentou sua fundamentada denúncia ao STF sobre o que denominou ¿sofisticada organização criminosa¿ que operava no âmbito do primeiro governo do PT. Afinal, o STF, por decisão quase unânime, aceitou a denúncia após sério trabalho do relator e judiciosa consideração da evidência por parte dos demais ministros. Pode-se dizer que as instituições estão funcionando, a opinião pública informada não pode ser ignorada e a imprensa livre vem demonstrando seu extraordinário valor para o País.

Para muitos, estes processos - inclusive as turbulências derivadas do precoce deslanchar do processo eleitoral de 2010 - devem ser vistos como ¿naturais¿ e não teriam por que afetar a economia. Esta continuaria imune a mais estes três anos de turbulências políticas. Como é sabido, em democracias consolidadas a política não interfere no dia-a-dia dos mercados, na condução da política macroeconômica, nas decisões de investimento das empresas nem nas expectativas sobre a evolução dos fundamentos estruturais da economia. Infelizmente, este ainda não é o estágio em que nos encontramos, apesar dos inegáveis avanços alcançados, obviamente não apenas nos últimos quatro anos e nove meses.

A situação internacional, mesmo sem grandes crises, não será tão extraordinariamente favorável como no último qüinqüênio. É verdade que o Brasil está mais bem preparado. Mas, do jeito que as coisas estão caminhando, é ilusório imaginar a fácil continuidade do atual estado de descolamento da economia de nossas turbulências políticas, de nossas fragilidades institucionais e regulatórias e das ineficiências que estas trazem para a gestão da coisa pública.

Particularmente preocupantes são a voracidade expressa na vertiginosa expansão do gasto público corrente e a politização indevida da gestão pública, por meio do aparelhamento do Estado para ajudar a ¿construir candidaturas oficiais¿ em 2010 e 2014 e consolidar um projeto de continuidade no poder. Esta voracidade cobrará o seu preço, em termos de um menor ritmo e menor eficiência dos investimentos, públicos e privados, de que necessitamos e dos quais depende fundamentalmente o crescimento sustentado de nossa economia.

Seria uma pena que o País só se desse conta disto após 2010, e não desde já, por meio de um debate sério, sem ilusionismos, reiterações de promessas não cumpridas e discursos de palanque totalmente fora de hora.

Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC