Título: É possível uma Constituinte só para reforma política?
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/09/2007, Nacional, p. A10

Debate

CONTRA: Ives Gandra Martins*

Em 1985 e 1986, presidi o Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp). Desde 1984, defendíamos, naquele sodalício, uma Constituinte exclusiva. A tese do Iasp era simples. Num processo de redemocratização, outorgar aos políticos o direito de produzir um novo texto constitucional seria permitir que, mais uma vez, o interesse público fosse confundido com o interesse dos detentores do poder.

Propugnávamos, então, que houvesse uma Constituinte exclusiva, em que aqueles que concorressem para integrá-la, uma vez elaborado o texto final e promulgado, voltariam para casa e não poderiam ser candidatos nas eleições seguintes.

Em nossa visão, interessar-se-iam em participar como constituintes verdadeiros patriotas, não preocupados em conquistar o poder, mas em servir à Nação, certos de que professores e intelectuais de bom conhecimento em matéria constitucional candidatar-se-iam a produzir um texto definitivo para as futuras gerações.

Na elaboração do projeto do qual resultou a emenda constitucional n. 26/86, o deputado Flávio Bierrenbach -hoje Ministro do Superior Tribunal Militar (STM) - encampou a idéia como relator nomeado, tendo sido, por essa razão, alijado da relatoria. Do fato decorreu a convocação de Constituinte em que os parlamentares e usufrutuários do Poder Legislativo produziram texto que já hospeda 59 emendas e criou uma Federação maior que o PIB.

Hoje, se se pretender voltar à proposta do Iasp, haveria a necessidade de três quintos do Congresso Nacional para aprovar emenda constitucional nesse sentido. Ter-se-ia ainda que permitir ao povo referendar o projeto aprovado ou realizar-se plebiscito com tal perspectiva, com o que se eliminaria o obstáculo das cláusulas pétreas. O povo escolheria entre ¿não-políticos¿ os futuros autores da Carta Constitucional.

Como quem tem poder pensa mais em detê-lo do que em servir e devendo tal proposta ser aprovada pelos parlamentares para ser viabilizada, estou convencido de que os ideais de redemocratização e de produção de um texto enxuto, técnico e de aprovação nacional não têm qualquer viabilidade.

Qualquer outra forma de ¿Constituinte exclusiva¿ objetivará, apenas, assegurar àqueles que hoje detêm o poder chance maior de impor seu estilo de governar, lembrando-se que Chávez, Corrêa e Morales estão reformulando as leis supremas de seus países, em exclusivo benefício próprio.

O poder, infelizmente, quase nunca é compatível com os interesses da nação.

*Ives Gandra Martins é professor Emérito das Universidades Mackenzie, UniFMU, UniFIEO, Unip e das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército e Superior de Guerra

A FAVOR: Maurício Rands *

A reforma política está travada. Sua paralisação deveu-se à falta de apoio na opinião pública, em muitos dos partidos e na maioria dos atuais parlamentares. Como destravá-la? O PT faz a sugestão da convocação de uma miniconstituinte exclusiva. Ou, por outra via, a de reforma constitucional (no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) estabelecendo que os parlamentares eleitos em 2010 terão mandato expresso para fazer a reforma político-eleitoral por maioria absoluta. Somente a ampla participação - e pressão - da sociedade poderá fazê-la andar.

Uma Constituinte exclusiva para a reforma política seria expressão do Poder Constituinte Derivado. Isso porque o Poder Constituinte Originário decorre de uma situação de fato que implica ruptura da ordem constitucional anterior. É uma refundação do Estado, sendo, portanto, ilimitado. O Poder Constituinte Derivado, ao contrário, é criado e instituído pelo poder originário, sendo por ele limitado.

A reforma da Constituição para mudar nossas instituições políticas pode ser feita de dois modos: por simples emenda constitucional votada pelo Congresso; ou por emenda constitucional votada por uma assembléia de representantes populares expressamente mandatados para fazê-la. Em ambos, trata-se de um Poder Constituinte (Derivado), cujo exercício é transferido pelo seu titular - o povo - aos seus representantes. Nesta segunda via, o Congresso exerce seu Poder Constituinte Derivado por um caminho indireto. Em vez de emendar diretamente a Carta, delega a uma assembléia de representantes eleitos para este fim. Esse corpo específico de representantes do povo faz a reforma com dupla legitimação: a delegação direta dada pelo povo através do voto; e a transferência de poderes de reforma constitucional feita pelo Constituinte Derivado - o Congresso. Com isso, aumentam as chances de êxito de uma reforma até agora bloqueada por visões e interesses imediatos de partidos e parlamentares. O debate na sociedade e a própria exclusividade dos trabalhos de reforma pela miniconstituinte específica conferem a reforçada legitimidade para romper a atual paralisia. Naturalmente, a delegação pelo Congresso e pelo voto do povo seria circunscrita aos temas específicos da reforma, respeitadas as cláusulas pétreas definidas no art. 60 da Constituição. Aos que levantam a impossibilidade jurídica do procedimento, fica a pergunta: se o Poder Constituinte Derivado permite que o Congresso reforme diretamente as normas constitucionais políticas, como negar-lhe o poder de delegar a atribuição a um corpo de representantes populares eleitos para cumprir tal mandato? Como proibir a delegação se o próprio titular do Poder Constituinte - o povo - estaria transferindo o exercício desse poder, embora parcialmente, aos membros da assembléia eleita?

*Maurício Rands é professor de Direito da UFPE, doutor pela Universidade de Oxford e vice-líder do PT na Câmara