Título: Bolívia vende o gás que não tem
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/09/2007, Notas & Informações, p. A3

A Termocuiabá, responsável pelo suprimento de energia elétrica para a capital de Mato Grosso, ficará, neste mês, sem o gás boliviano, conforme entendimento entre os governos do Brasil e da Bolívia. Assim tenta-se esconder um problema bem mais grave: o fato de a Bolívia ter vendido ao Brasil o gás que não produz na quantidade contratada. Obrigada a fornecer 30 milhões de m³/dia à Petrobrás, a Bolívia vinha entregando de 27 milhões a 28 milhões de m³/dia.

A gravidade do problema da oferta de gás já era evidente há uma semana, na reunião em que se decidiu o corte do gás para Cuiabá, entre o ministro boliviano de Hidrocarbonetos, Carlos Villegas, o presidente da estatal boliviana YPFB, Manuel Morales Olivera, o diretor de Energia do Itamaraty, embaixador Antonio Simões, e o secretário de Energia Elétrica do Ministério de Minas e Energia, Ronaldo Schuck. O objetivo do encontro era concluir um contrato definitivo de fornecimento de 1,1 milhão de m³/dia de gás à Termocuiabá, até 2010, e de 2,2 milhões de m³/dia a partir de 2011.

O que se fez foi um arranjo emergencial, com a característica da precariedade dos acertos entre os governos Lula e Evo Morales. Sua serventia foi ajudar a Petrobrás a cumprir compromissos internos - como o de assegurar gás às termoelétricas por ela controladas. Por não ter atendido às determinações do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) de fornecer às térmicas gás suficiente para gerar 1.197 MW médios, a Petrobrás recebeu, em agosto, multa de R$ 84,6 milhões da agência reguladora, a Aneel - multa essa suspensa no último dia de agosto.

Após o entendimento sobre a Termocuiabá, ficou patente que o cobertor é curto: alegando a necessidade de manutenção de poços produtores, a Bolívia anunciou, terça-feira, que também não honrará os contratos com a Argentina e com a Comgás. Agrava-se, assim, o ¿racionamento branco¿ do insumo já enfrentado pelas indústrias brasileiras. O presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, admitiu que há ¿déficit de gás¿.

Em menos de uma semana, a Bolívia suspendeu o fornecimento à Termocuiabá e cortou outros 3,1 milhões de m³/dia de gás enviados à Argentina (40% do total que era enviado) e 600 mil m³/dia para a Comgás. Constata-se, a cada dia, a incapacidade da Bolívia de cumprir os contratos de fornecimento - a produção caiu de 41 milhões de m³/dia de gás para 38,3 milhões m³/dia, segundo a Agência Boliviana de Informações -, mas teria de produzir 45,5 milhões de m³/dia para cumprir seus compromissos. É prova da incompetência gerencial do governo Evo Morales, cercado de lideranças radicais e aliado de governantes autoritários, como o venezuelano Hugo Chávez. ¿A Bolívia não investe na expansão da produção de gás, suas jazidas estão em curva decrescente de produção e o consumo interno está aumentando no país¿, declarou ao Correio Braziliense uma fonte do Itamaraty.

Até agora o problema da Termocuiabá parecia localizado. Operando desde 2002, com capacidade de geração de 480 MW, a Termocuiabá, multinacional controlada pela Prisma Energy (Grupo Ashmore) e pela Sheel, responde por uma quarta parte da geração de energia de Mato Grosso, de 1,92 mil MW. Em fevereiro último, o preço do gás boliviano a ela fornecido aumentou 252%, elevando de US$ 44,8 milhões a receita da Bolívia com a venda.

Mesmo sem dispor do gás boliviano, Cuiabá não está ameaçada de um colapso energético porque receberá eletricidade de outros Estados, por intermédio do Sistema Interligado Nacional. É, pois, a sobra temporária de energia no Brasil que explica, sem justificar, o acordo fechado às pressas.

O Brasil dependerá da Bolívia enquanto não passar a importar e processar, em grande escala, o gás natural liquefeito (GNL) importado e não iniciar a efetiva exploração das jazidas identificadas na Bacia de Santos. Não basta divulgar que as descobertas de gás nessa bacia foram reavaliadas para maior. É preciso - e logo - extrair gás delas.

A decisão do Brasil de exigir que a Bolívia entregue o gás natural que se comprometeu a entregar é justificável. O problema é que a Bolívia não entrega porque seu governo não tem competência para produzir o que vendeu.