Título: O social vai bem, o astral vai mal
Autor: Weis, Luiz
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/09/2007, Espaço Aberto, p. A2

O Brasil vai de vento em popa - e só não vê quem não quer. Prepare-se para uma surpresa o leitor que atribuir o diagnóstico e a crítica, ouvidos por este jornalista, a um ocupante do Planalto, como a ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, que só faltou anunciar o advento do milênio ao afirmar, em entrevista ao jornal O Globo, que ¿nunca passamos por um processo similar a este, mesmo na época do milagre econômico¿ (dos primeiros anos 1970).

O enunciado saiu, isso sim, da boca de um tucano, daqueles que, a cada eleição, faziam campanha e assinavam manifestos em favor de Fernando Henrique - segundo o qual só não vê quem não quer que a administração Lula é um naufrágio. Naturalmente, o mero fato de um fernandista dizer uma heresia daquelas, capaz de enrugar a própria carteirinha partidária de tanto constrangimento, não transforma o herege em portador da verdade.

Ocorre que, no caso, o tucano heterodoxo, que prefere não ser identificado, tem um currículo e uma história que obrigam quem os conhece a levar a sério essas suas idéias de ouriçar as plumas de seus irados correligionários. Além do mais, trata-se de alguém que não tem por hábito brigar com os fatos, mas que procura, em vez disso, ligar os pontos que lhes darão uma fisionomia coerente - o que faz uma falta danada ao viesado debate público brasileiro.

E os fatos, releve-se a repetição, só não os vê quem não quer. Estão nos jornais, praticamente todos os dias, desde que o IBGE divulgou, há cerca de duas semanas, a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), fechada em setembro de 2006. O que o levantamento tem de mais auspicioso - e ponha-se auspicioso nisso - é o aumento de 7,2% da renda média real do trabalhador brasileiro (e de 8,5% na metade mais pobre da população), o maior em 11 anos.

De posse dos dados do IBGE, os estudiosos se puseram a fazer outras contas. A economista Sonia Rocha, do Instituto de Estudos de Trabalho e da Sociedade (Iets), por exemplo, concluiu que nunca antes, na série histórica que remonta a 1987, a pobreza caiu tão acentuadamente como de 2005 para o ano passado: 10,6%. Os pobres eram quase 55 milhões. São 49 milhões. O mesmo padrão se repetiu entre os indigentes. Eram 12,2 milhões. Tornaram-se 10,3 milhões.

Outros citam cifras diferentes, embora no mesmo sentido. Mas as da economista do Iets parecem as mais sugestivas porque, para ela, pobre é a família cujos membros ganham até R$ 266,15 mensais, e miserável é a família em que o teto per capita é de R$ 66,28. (Já a linha da pobreza da Fundação Getúlio Vargas é de R$ 125.) Quanto mais alta a posição do sarrafo, mais significativa é a redução do contingente de pobres. Se esse total estivesse aumentando, um patamar mais baixo indicaria um quadro alarmante. É só fazer as simulações.

Outro fator de diminuição da pobreza extrema está nos benefícios previdenciários vinculados ao salário mínimo, que aumentou 25% em termos reais no primeiro governo Lula - coisa de truz. O economista Ricardo Paes de Barros, do Ipea, observa que, de 2001 a 2006, a renda dos 10% mais pobres cresceu ao ritmo chinês de 9% ao ano - o que a América Latina como um todo levou 15 anos para obter.

Também a desigualdade - medida pelas variações da renda do trabalho declarada pelos pesquisados - manteve a queda, lenta, porém contínua, iniciada em 1998. Argumenta-se que a Pnad não capta os polpudos rendimentos de aplicações financeiras dos que têm mais; incluídos, produziriam um resultado, esse sim, realista. A ressalva não parece fazer sentido: afinal, os rendimentos do dinheiro tampouco eram computados quando o índice de desigualdade era pior do que hoje.

A formidável expansão das políticas de renda no atual governo - com salários mínimos reais substancialmente maiores, o Bolsa-Família chegando a 11 milhões de famílias e a revolução do crédito consignado - explica muito, mas não tudo, desse progresso social. A economia também bombou, criando mais de 8 milhões de empregos - e mais empregos com carteira assinada do que sem, indício de salários melhores. Prevê-se que os brasileiros terão para gastar com as festas deste fim de ano R$ 88,7 bilhões (3,5% do PIB), R$ 13,7 bilhões a mais do que no Natal passado.

Vento em popa é ainda isto: nos 12 meses até agosto, o investimento externo produtivo chegou a R$ 35 bilhões, a maior marca desde 1947, quando o Banco Central passou a contabilizá-lo. Nem durante as privatizações do governo passado se viu tanto dinheiro entrando pelo ladrão, com perdão da palavra. O que remete ao outro lado da moeda. As páginas econômicas dos diários são um colírio - sinal de que Lula se saiu melhor do que a encomenda ao levar adiante o que o que o governo anterior começou. Mas o resto é dose.

O noticiário metropolitano é um banco de sangue. Para a imensa maioria das pessoas, além da insegurança, o cotidiano é um purgatório de serviços públicos indecentes, primitivismo e império da lei do mais forte. Qualidade de vida é uma expressão de humor negro. De seu lado, o noticiário político é pouco mais do que a crônica da corrupção permanente, a feira de escândalos sempre renovada.

A tal ponto se chegou que, à maneira dos americanos que já largaram de acompanhar o dia-a-dia do matadouro iraquiano, muitos brasileiros desistiram de se enfronhar nas lambanças denunciadas - sem falar nessa abjeção que é a permanência de um Renan Calheiros na presidência do Senado. ¿A sociedade está enfastiada¿, resume o presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio, Roberto Wider. E os políticos estão desacreditados demais para liderar seja o que for capaz de deter o definhamento da indignação em resignação.

O deputado carioca Fernando Gabeira, do PV, que insiste em rolar a pedra morro acima, tentando mobilizar o público para sanear o Senado, conta que a filha acha essas coisas ¿um mico¿. É o túnel no fim da luz.