Título: O STF e as finanças públicas
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/09/2007, Notas & Informações, p. A3
Numa decisão cujas implicações institucionais e econômicas passaram despercebidas da opinião pública, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar suspendendo a decisão da 17ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que mandou um dos maiores bancos de investimento do País corrigir pelo IGP-M os contratos, as aplicações financeiras e os títulos da dívida pública vigentes na época da conversão da Unidade Referencial de Valor (URV) para o real, entre julho e agosto de 1994. Como na ocasião as autoridades econômicas usaram o IGP-2 e a diferença entre os dois índices é de 39%, vários correntistas recorreram ao Judiciário reivindicando o ressarcimento de supostos prejuízos.
Para se ter idéia do montante da causa, só para a União o prejuízo seria de R$ 26,5 bilhões, segundo estimativas da Secretaria do Tesouro. A questão é tão importante que, para evitar uma enxurrada de liminares contra bancos públicos e privados, em 2005 a Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif), com apoio do Banco Central, entrou no STF com uma Argüição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Com esse recurso procura-se obter uma decisão judicial única para todos os processos sobre uma determinada matéria que tramitam em vários tribunais.
Ao justificar sua iniciativa, a Consif alegou que sentenças e acórdãos discrepantes causariam insegurança jurídica, pondo em risco o próprio equilíbrio do sistema financeiro. E, preocupadas com o impacto que decisões favoráveis aos correntistas poderiam causar às finanças públicas, as autoridades monetárias pediram ao Supremo que avocasse todos os processos relativos à utilização do IGP-M como parâmetro para correção de contratos, financiamentos e títulos públicos. Em agosto de 2006, o então relator do caso, ministro Sepúlveda Pertence, acolheu o recurso da Consif e concedeu liminar com efeito vinculante, ordenando que nenhum outro tribunal estadual ou federal decidisse ações sobre a matéria, antes que o Supremo as julgasse no mérito.
Alguns tribunais, contudo, sob alegação de que as diferentes instâncias e setores do Poder Judiciário são independentes e que discussão sobre índices de correção monetária não envolve matéria constitucional, ignoraram a decisão de Pertence. É o caso do TJSP, um dos mais importantes tribunais do País e de onde vieram 2 dos atuais 11 ministros do Supremo. Apesar de alertados pelos advogados das instituições financeiras para o alcance da liminar concedida por Pertence, os desembargadores continuaram a julgar a matéria. Depois de receber uma decisão desfavorável da 17ª Câmara de Direito Privado da corte, no último mês de agosto, obrigando-o a pagar cerca de R$ 220 milhões a título de diferença entre o IGP-M e o IGP-2, o Banco Itaú BBA entrou com uma reclamação no Supremo.
O recurso foi acolhido e o relator, ministro Celso de Mello, aproveitou a oportunidade para enquadrar as Justiças estaduais e firmar a autoridade do STF como órgão máximo do Poder Judiciário. Além da ação contra o Banco Itaú BBA, outra reclamação, esta envolvendo o Banco Multiplic e no valor de R$ 450 milhões, chegou à corte. Após criticar de modo contundente o comportamento dos desembargadores paulistas, censurando-os por desrespeitarem o princípio da hierarquia no âmbito das instituições judiciais, Mello, que é o ministro mais antigo do STF, revalidou, no conteúdo e no alcance, a liminar concedida por Pertence. Ele também lembrou que, ao centralizar a discussão judicial sobre o índice de correção monetária previsto pelo Plano Real, o STF deu um tratamento uniforme a uma questão estratégica para as finanças públicas, evitando com isso tratamentos desiguais, em que um banco perde num tribunal e outro banco ganha em outro tribunal, gerando distorções no sistema bancário e abrindo caminho para a constituição de novos esqueletos financeiros.
Como guardião máximo da coerência do sistema jurídico em vigor, o STF cumpriu sua função de promover o controle constitucional em casos de interesse geral do País.