Título: Lula em Nova York
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/09/2007, Notas & Informações, p. A3

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumpriu em Nova York dois rituais diplomáticos, ambos convencionais e promocionais. Discursou na abertura dos debates da 62ª Assembléia-Geral da ONU, desempenhando o papel tradicionalmente atribuído ao representante do Brasil, e fez a esperada defesa do programa brasileiro de biocombustíveis. Na véspera, conversou com o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e dele ouviu a proposta de uma redução razoável de subsídios à agricultura em troca de maior abertura brasileira à importação de bens industriais. Essa proposta havia sido apresentada uma semana antes em Genebra, pelos negociadores americanos na Rodada Doha, e o encontro dos presidentes serviu para enfatizar o interesse dos dois governos.

Se o presidente Bush quiser, mesmo, incluir o acordo final de Doha em seu legado político, terá de empenhar-se muito pela conclusão das negociações em poucos meses, porque em breve os políticos americanos estarão concentrados nas eleições de 2008. É difícil dizer se o capital político do presidente Bush ainda será suficiente para obter apoio do Congresso às concessões necessárias à conclusão da rodada.

Abrindo os debates na ONU, o presidente Lula fez a previsível defesa da produção de etanol e de biodiesel como parte da solução dos problemas ambientais do globo. Apresentou resultados do combate ao desmatamento da Amazônia, reafirmou a soberania brasileira na região e mostrou a capacidade nacional de produzir tanto biocombustíveis quanto alimentos.

Teria de enfrentar o assunto, não só para promover interesses comerciais brasileiros, mas também para responder a novas pressões internacionais contra os programas de produção de etanol. A mais nova pressão pode ser especialmente grave, em termos políticos, pois parte da própria ONU. Num estudo preparado para debate na Assembléia-Geral, o relator das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, o suíço Jean Ziegler, propõe moratória de cinco anos para o aumento da fabricação de álcool a partir de produtos agrícolas. Desprezando as diferenças entre o programa brasileiro, baseado na cana, e os de outros países, dependentes do milho e de outros vegetais, Ziegler alerta para o risco de mais fome no mundo se a oferta de etanol for ampliada.

Como observou, corretamente, o presidente Lula, se alguns milhões passam fome, em várias partes do mundo, não é por falta de alimento, mas de renda para comprá-lo. Há comida suficiente, nos países mais produtivos, para o consumo interno e para exportação, e os agricultores mais eficientes poderiam produzir muito mais, se houvesse mercado para suas safras. Também a África tem muita terra para a produção de etanol e de alimentos. Ziegler e outros consertadores do mundo fariam muito melhor se elaborassem e financiassem projetos de desenvolvimento agrícola para as populações africanas, em vez de propor a interrupção de programas nos países mais produtivos, como o Brasil.

O presidente Lula não poderia evitar o assunto, mas seu discurso deve produzir efeitos limitados. Que fazia a diplomacia brasileira, enquanto era preparado o relatório da ONU contra o etanol? Se o assunto é realmente importante para o Brasil, o documento deveria ter sido contestado antes.

O mundo industrializado continua a dar as cartas no jogo da política ambiental - e essa política se mistura cada vez mais com as questões do comércio internacional. São cada vez mais fortes, na Europa, as pressões a favor de ações protecionistas em nome de objetivos ecológicos e sanitários. Em Washington, debate-se agora uma nova proposta de ¿incentivo¿ à adoção de políticas de defesa ambiental pelos emergentes. O risco de ampliação do protecionismo disfarçado de ambientalismo é crescente.

O esforço pessoal do presidente Lula não pode substituir uma ação diplomática articulada para enfrentar essa nova ameaça. Mas o governo nem sequer dispõe de uma orientação oficial para o tratamento político do problema. Se diferentes setores da administração federal não se entendem sobre os objetivos das políticas agrícola, agrária e ambiental, como enfrentar os novos desafios nas várias frentes diplomáticas? Não será, decerto, com discursos ocasionais do presidente da República.