Título: Os 50 anos do Sputnik
Autor: Câmara, Gilberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/10/2007, Espaço Aberto, p. A2

Amanhã, 4 de outubro, faz 50 anos que a então União Soviética lançou o satélite Sputnik-1, o que deu início à corrida espacial e motivou grandes feitos tecnológicos, muitos sonhos de viagens interplanetárias, benefícios concretos para a humanidade e um novo teatro de luta militar. As reações no mundo inteiro foram imediatas. Os EUA se lançaram a um projeto ambicioso de conquista da Lua. Nas palavras do presidente Kennedy, em 1961, ¿... antes que esta década termine, levaremos um homem à Lua e o retornaremos em segurança à Terra¿. Os EUA gastaram mais de US$ 130 bilhões e conseguiram um dos maiores feitos da engenharia humana.

Passados 50 anos, é possível fazer um balanço da corrida espacial. O que verificamos é que a humanidade se motiva muito mais com os feitos dos astronautas do que com as realizações práticas dos satélites não-tripulados. Algumas profecias se realizaram. Em 1945, o escritor de ficção científica Arthur C. Clarke concebeu a idéia de satélites geoestacionários para comunicações, o que hoje faz parte do cotidiano. Outros sonhos estão distantes e dificilmente se realizarão tão cedo. Colônias na Lua e em outros planetas e viagens na velocidade da luz esbarram na dura realidade de que a espécie humana é um produto do planeta Terra.

O espaço é um ambiente inóspito para máquinas e homens. Os equipamentos enfrentam o bombardeio da radiação e, uma vez postos em órbita, dificilmente podem ser consertados. Os homens só podem sobreviver se presos a cordões umbilicais de alta tecnologia, quando as atividades cotidianas viram proezas. O sonho de viagens intergalácticas esbarra na realidade de um cosmos que não nos pertence. Diante de tantos desafios, poderíamos imaginar que a humanidade fosse parcimoniosa em seus projetos espaciais. Reservar o espaço apenas para as atividades socialmente benéficas. Mas o homem não deseja apenas o bem-estar e o conhecimento. Deseja também conquista, domínio e poder. Um dos grandes mitos do programa espacial é que o projeto Apolo teve um grande retorno econômico. Na realidade, poucas tecnologias desenvolvidas para colocar o homem na Lua têm uso na Terra. Os benefícios foram indiretos. A enorme auto-estima gerada pela visão da bandeira americana na Lua e a mobilização do complexo industrial-militar americano foram os reais retornos do programa.

Os maiores benefícios do programa espacial decorrem dos satélites não-tripulados, que não despertam tanto nossa imaginação, mas são fruto de trabalho árduo de engenharia. Sem o glamour dos astronautas, eles operam dia e noite em tarefas insubstituíveis. Os satélites de telecomunicações, científicos, de observação da Terra e de navegação são partes de nossa civilização. Comunicar-se a qualquer tempo e em qualquer lugar era um sonho. Hoje é (quase) trivial. A capacidade de monitorar o desmatamento, as queimadas e a agricultura é essencial para construir um planeta sustentável. Em qualquer ponto do planeta, um receptor GPS se conecta a uma constelação de satélites no espaço e diz ao homem exatamente onde ele está. Satélites científicos como o Telescópio Espacial Hubble ampliaram nossas conjecturas sobre o que pode ter acontecido nos minutos iniciais do universo.

Mas não nos empolguemos. A maior parte dos recursos gastos no espaço atende a interesses de poder. Os objetivos científicos de projetos bilionários como a Estação Espacial Internacional poderiam ser obtidos por missões não-tripuladas. Projetos como a missão tripulada americana para Marte têm por objetivo real mobilizar as capacidades militares das grandes potências.

E o Brasil? Nosso projeto de nação é ser uma potência ambiental, com um crescimento baseado em energias limpas e que preserva nosso meio ambiente. O programa espacial brasileiro reflete esse projeto e nosso plano de satélites até 2020 considera como prioridade as áreas de observação da Terra, ciência espacial e navegação. No dia 19 de setembro lançamos com êxito o CBERS 2B, o terceiro satélite da cooperação espacial Brasil-China. Já estão em construção os CBERS 3 e 4, com lançamentos previstos para 2010 e 2013. Esses três satélites custam ao Brasil R$ 600 milhões, a maior parte em contratos com a indústria brasileira, enquanto um único satélite americano semelhante (o Landsat-7) custou mais de R$ 1,2 bilhão. Os benefícios sociais e econômicos são grandes. Já distribuímos mais de 320 mil imagens CBERS a mais de 15 mil usuários brasileiros. Imagens CBERS também são fornecidas gratuitamente a nossos vizinhos sul-americanos e, em breve, estarão disponíveis para os países da África, da América Central e do Caribe.

Os sucessos do programa CBERS também nos fazem refletir sobre os demais componentes do programa. Ter lançadores e um centro espacial é importante para o Brasil, mas estamos limitados pelas fontes de financiamento atuais. Nos países desenvolvidos e nos demais BRICs (Rússia, Índia e China), orçamentos militares cobrem a maior parte dos custos de desenvolvimento de lançadores. E isso nos falta hoje. No Brasil, quem paga as atividades espaciais é o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). O programa espacial enfrenta a competição bem-vinda e necessária de temas como biotecnologia, nanotecnologia, mudanças climáticas, além do apoio às ciências básicas. É pouco realista supor que apenas o orçamento de pesquisa civil possa atender a todas as demandas do programa espacial. Num futuro desejável, o programa espacial brasileiro contará com orçamentos conjugados do MCT e do Ministério da Defesa. Teremos condição de ter contratos industriais em larga escala para foguetes e satélites, como fazem todas as demais potências espaciais. Com um programa industrial de lançadores, o Brasil finalmente conseguirá o tão almejado acesso autônomo ao espaço. E nesse momento nos afirmaremos como uma potência espacial plena.

Gilberto Câmara é diretor-geral do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)