Título: Banalização do caos
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/10/2007, Notas & Informações, p. A3

Se fosse para considerar apenas o nível de organização com que os sem-teto saíram às ruas na segunda-feira, simultaneamente, em 15 cidades de 14 Estados; o grau de desrespeito às leis e aos direitos alheios (como o de propriedade e o de ir-e-vir); a invasão do espaço público para nele perpetrar cenas de violência, muitos poderiam ver na mobilização realizada por cinco centrais de sem-teto (a maioria ligada ao PT) um movimento subversivo e sedicioso como outros que têm pululado em nuestra latinoamerica, no que as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia são o exemplo mais notório.

Há de se convir, no entanto, que no essencial as semelhanças não existem, especialmente porque o caos urbano que as entidades de sem-teto brasileiras tentaram espalhar pelas regiões afora do País não passou de um ato ¿comemorativo¿: era para marcar o ¿Dia Nacional da Reforma Urbana¿- mais uma que este governo não fez. Nem por isso, no entanto, essa ¿banalização do caos¿ ou esse atentado à ordem pública, motivado por razões de marketing político, deixou de ser grave e merecer plena repulsa da sociedade brasileira. E repulsa, também, porque, apesar dos atos de violência que cometem contra as pessoas, os ditos ¿movimentos sociais¿ costumam receber, através de ONGs intermediárias, suculentos subsídios governamentais, quando não apoios diretos do governo - e o presidente Lula não fez parar sua comitiva, desceu do carro e pediu uma caneta para anotar, pessoalmente, as reivindicações dos manifestantes sem-teto que o cercavam? Por que não aproveitou para perguntar aos manifestantes a razão de tão violentas reivindicações se ¿nunca antes na história deste país um governo fez tanto pelos pobres¿ quanto o seu?

Prédios públicos depredados, estradas e avenidas bloqueadas e confrontos com a polícia que resultaram em feridos - tanto militantes como policiais - foram o saldo do ¿caos comemorativo¿ ocorrido no início da semana. Cerca de 5 mil manifestantes no Recife, outro tanto em Salvador, fecharam as principais avenidas das duas cidades. Os militantes pernambucanos entraram em confronto com a Polícia Militar, o que causou ferimentos em 8 pessoas. Em Teresina houve a tentativa de invasão das sedes da prefeitura e do governo do Estado do Piauí. Em São Paulo, dois prédios da região central da cidade, ambos pertencentes ao INSS, foram invadidos por cerca de 200 sem-teto, sob a alegação de que o governo não cumpriu até hoje o que prometera, em acordo de desocupação de um terceiro edifício do INSS, em 2004.

A propósito, entre as 12 reivindicações da ¿pauta¿ apresentada pelos grupos de militantes sem-teto - com as quais, aliás, a secretária nacional de Habitação, Inês da Silva Magalhães, já declarou concordar, com ¿poucas divergências¿ - destaca-se a destinação de todos os 5 mil imóveis vazios da União, além dos 52 da Rede Ferroviária Federal, para a construção de moradia. É sabido desde longa data - e não só desse governo, justiça se lhe faça - que a União é uma péssima administradora imobiliária. É preciso, no entanto, que se estabeleçam critérios e gestões em favor do que é patrimônio público, antes de simplesmente repassá-los, por doação, a particulares, com base em pressões e desobediências à ordem pública, a que estes se prestem, pois, se assim não for, estará aberto o permanente precedente de esbulho e violência, nas cidades, para a alegada conquista de ¿teto¿.

Agora, justamente por ter uma forte motivação ¿promocional¿, este caos comemorativo procurou superar a grande mobilização já feita em torno do já famoso Abril Vermelho, que este ano produziu 22 invasões a prédio e terrenos em 10 Estados. Portanto, suplantou-o pelo menos em número de cidades envolvidas. O problema é que mobilizações dessa espécie vão se tornando uma verdadeira banalização do caos, quando a falta de respeito às leis, à ordem pública e ao direito de as pessoas se locomoverem livremente no espaço coletivo significa o desprezo solene a quaisquer direitos, ínsitos ao grupo das democracias civilizadas do mundo - ao qual desejamos tanto pertencer.