Título: O filme é melhor que a foto
Autor: Fausto, Sergio
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/09/2007, Espaço Aberto, p. A2

A absolvição de Renan Calheiros no plenário do Senado reforçou a sensação de que a impunidade é uma deformação congênita do Brasil. Sem negar a gravidade do episódio, tenho visão diferente: a impunidade nem faz parte do DNA nacional nem está ganhando a briga contra um organismo indefeso. Ao contrário, o Brasil, depois do retorno à democracia, vem desenvolvendo anticorpos eficientes para o combate à corrupção endêmica na administração pública.

A Constituição federal de 1988 foi um ponto de partida. De um lado, porque assegurou a independência do Ministério Público, agente-chave do nosso sistema imunológico atual. De outro, porque incluiu entre os crimes de improbidade administrativa não apenas os casos de enriquecimento ilícito e dano ao erário, mas também qualquer ato ou omissão que viole os princípios da moralidade, impessoalidade e legalidade no trato da coisa pública. A tipificação dos crimes de improbidade veio com a chamada Lei do Colarinho Branco, curiosamente promulgada no governo do presidente Collor.

Ora, a lei, dirão os mais céticos. Ocorre que a lei da improbidade administrativa começa a pegar. Conforme matéria recentemente publicada neste jornal, estão em fase de execução 25 processos com sentença condenatória final por atos de improbidade praticados contra os governos do Estado e do Município de São Paulo. Entre os réus estão Paulo Maluf e Celso Pitta. As ações, em valores superiores a R$ 130 milhões, implicam seqüestro de bens para ressarcimento aos cofres públicos e perda dos direitos políticos, sem prejuízo das sanções penais. Ao criar jurisprudência, essas ações podem tornar mais rápidas outras que vêm na seqüência.

Na parte investigativa, é grande a melhora dos serviços de inteligência da Polícia Judiciária, função exercida pelas Polícias Civis no nível estadual e pela Polícia Federal na esfera da União. O avanço nessa área resulta da incorporação de novas tecnologias, do treinamento de equipes especializadas e também de modificações legais. Até 1996, por exemplo, era frágil o respaldo legal para as interceptações telefônicas, previstas apenas no Código Brasileiro de Telefonia. Naquele ano, votou-se lei complementar à Constituição federal regulamentando o chamado ¿grampo telefônico¿.

Aumentou também o controle sobre as transações no sistema financeiro. O fato mais importante foi a criação em 1998 de uma unidade de inteligência vinculada ao Ministério da Fazenda e especializada no combate e prevenção à lavagem de dinheiro, crime que até então nem sequer figurava na legislação brasileira. Desde 2001 as instituições financeiras estão obrigadas, por lei, a fornecer ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) informações sobre operações suspeitas, em qualquer fase do inquérito ou processo judicial.

Na magistratura sopram igualmente ventos de mudança, como mostra a decisão recente do Supremo Tribunal Federal no caso do chamado mensalão. Paradoxalmente, a lei do dito foro privilegiado, que assegura o direito de agentes políticos a julgamento exclusivo nos tribunais superiores, pode vir a facilitar, e não dificultar a condenação de quem se imagina acima da lei. Isso porque não cabe recurso das decisões dos tribunais superiores. Nessa linha, é importante prepará-los para o exercício dessa função ou criar um tribunal especializado em crimes de corrupção contra a administração pública, como propõe projeto de emenda constitucional do deputado Paulo Renato (PSDB-SP), recém-aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

Mais de uma vez, é verdade, ocorreram abusos por parte de membros do Ministério Público e da Polícia Federal. Coisa grave, com desrespeito a direitos individuais, intencionalidade e exploração política indevida. A sociedade brasileira, porém, tem-se mostrado capaz de oferecer os antídotos contra esses abusos. Exemplo: a condenação, pelo Conselho Superior do Ministério Público, de dois procuradores que moveram ações infundadas contra o ex-secretário da Presidência da República Eduardo Jorge.

Na democracia, a mudança não se dá por linha reta, mas por vias sinuosas, marchas e contramarchas, correções de percurso e aprendizado cumulativo, envolvendo a legislação, as instituições e os agentes, sempre no conflito. Em última instância, o rumo do processo é resultante do embate de valores e interesses dentro da própria sociedade. Mas o rumo depende também da qualidade das lideranças.

Aqui parece estar o nosso maior problema. Na verdade, três problemas inter-relacionados: a entressafra de lideranças políticas, sobretudo no Parlamento, já quase esgotada a que se formou na luta contra a ditadura; a consolidação de um bloco de poder (PT-PMDB) que amplia o potencial de corrupção na administração pública, com o aparelhamento partidário, reestatizações brancas, etc.; e os vícios de um sistema eleitoral que faz do mandato uma mercadoria negociável, num mercado político dominado pelo Executivo e pela competição individual por recursos para financiamento de campanha. Não são obstáculos intransponíveis, mas vão nos custar tempo e muitos embates.

Dizia o historiador inglês Lawrence Stone que a História avança lentamente, como uma carroça desajustada. A desajustada carroça brasileira não está livre do risco de perder o rumo. Mas há razões sólidas para acreditar que ela avança, apesar de tudo, na direção certa, de maior moralidade pública: escolarização crescente, independência e pluralismo da mídia, legislação adequada em muitos pontos, modernização tecnológica do Estado, profissionalização de agentes do sistema de Justiça, etc. A questão é a velocidade de sua movimentação e os recursos que o País vai desperdiçando no meio do caminho.