Título: Sem temor
Autor: Mercadante, Aloizio
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/09/2007, Espaço Aberto, p. A2

Há um compreensível sentimento de indignação na opinião pública nacional em relação à impunidade que marca historicamente a sociedade brasileira. É necessário, contudo, que se considere que a leniência e a impunidade não podem ser substituídas por processos sumários e linchamentos. A luta contra a corrupção tem de ser feita democraticamente, no moldes do Estado de Direito.

De fato, a História possui exemplos que demonstram que a conciliação entre a vontade de punir e a imprescindível proteção dos direitos dos acusados, embora difícil, é sempre o melhor caminho. Em 1933, James Edwin Horton, um obscuro juiz do Estado de Alabama, nos Estados Unidos, fez algo que assombrou o mundo. Tratava-se do julgamento dos Scottsboro Boys, nove adolescentes negros acusados de terem violado duas mulheres brancas. Nesse julgamento, realizado sob intensa pressão da opinião pública, que exigia a condenação à pena de morte dos acusados, um júri todo branco fez aquilo que era esperado: declarou culpados os jovens negros. No dia seguinte ao veredicto, esperava-se também que o juiz James Horton apenas anunciasse as penas para os acusados. Para espanto geral, inclusive da própria defesa, contudo, James Horton leu uma sentença que entraria para a História. Nela, após demonstrar que as provas eram insuficientes para a condenação, James Horton desconsiderou o veredicto do júri, fato inédito em casos de crimes graves, e ordenou que as investigações prosseguissem e os acusados fossem submetidos a um novo julgamento. No acanhado Fórum de Limestone County, onde James Horton proclamou a sua histórica sentença, foi inscrito, anos depois, o seu conselho aos jurados do caso: ¿Nós temos apenas que cumprir com nosso dever, sem temor, nem favor.¿

Longe de mim querer me comparar com James Horton, um herói do sistema judiciário dos Estados Unidos, mas acho que seu exemplo deve servir de inspiração. E embora o poderoso presidente Renan Calheiros não seja um desprotegido adolescente vítima de racismo e o plenário do Senado Federal tenha muito mais pompa e circunstância do que o provinciano Fórum de Limestone County, nele poderiam ser reproduzidas as sábias palavras de James Horton, quando ocorrer novo julgamento de cassação de mandato. Com efeito, em casos como esse os parlamentares têm de deixar de ser políticos, desfazendo-se de seus interesses eleitorais, e votar como os jurados devem fazer sempre, sem o temor à opinião pública e também sem o favor do corporativismo, que permite a impunidade que causa tanta indignação à sociedade brasileira.

Pois bem, na votação que absolveu temporariamente o senador Renan Calheiros, com base num primeiro processo, procurei agir e votar com equilíbrio, coisa muito difícil numa situação que beirava o linchamento público. Tenho a convicção de que os indícios reunidos nesse primeiro processo eram insuficientes para condenar o senador. O leitor, com base no que viu na mídia, pode estar convencido do contrário. No entanto, notícia não é prova e o tempo da imprensa não coincide com o tempo da justiça. A leitura atenta do processo me provocou mais dúvidas do que certezas, pois não ficou demonstrada a acusação, qual seja, a de que a empreiteira havia pago despesas pessoais do senador. Ao mesmo tempo, julgava que as investigações tinham de prosseguir, pois Calheiros não provou a origem de seus recursos e há ainda acusações graves que precisam ser esclarecidas, como as referentes à compra de rádios por intermédio de ¿laranjas¿. Preocupava-me também o fato de que há outros três processos em andamento contra o senador Calheiros, o que introduz terrível componente de irracionalidade no julgamento do Senado. De fato, como as acusações e os processos são desconexos, eles induzem votações diferentes. Pode-se votar pela absolvição em um e pela cassação em outro, ou vice versa? Não aceitaria essa incoerência.

Ante esse quadro, decide me abster, sustando o meu posicionamento nesse primeiro processo, e propor a articulação de todos os processos remanescentes para que pudéssemos nos pronunciar, em manifestação definitiva e firme, com todos os elementos à mão e numa única sessão aberta, sobre o cassação do senador Renan Calheiros. Como era de esperar, dado o clima emocional em torno do caso, não fui compreendido. Pior: como a sessão foi secreta, inventaram que articulei a absolvição de Renan Calheiros, convencendo outros senadores do PT a votar pela abstenção, o que é inteiramente falso. Na realidade, votei com transparência e destaco que defendi o afastamento de Renan Calheiros da presidência do Senado, pois entendo que o primeiro dever de um presidente é com a defesa da instituição que preside.

Tenho pago um preço pessoal alto por essa atitude. Fazer justiça num regime aberto e democrático, no qual o julgamento da opinião pública pode não coincidir com o julgamento daqueles que têm de ter preocupação com a proteção dos direitos e garantias individuais, é às vezes muito difícil. James Horton, indagado se tinha consciência de que aquela sentença equivalia à sua ruína como magistrado, que de fato aconteceu, apenas respondeu: ¿Que se faça justiça, ainda que os céus desabem sobre mim.¿

Só espero que no próximo julgamento se possa fazer, em definitivo, justiça no caso Renan Calheiros. Aguardarei os resultados das investigações e, conforme demonstra a minha trajetória pública de luta pela ética na política, não me furtarei a dar o meu voto definitivo. Os céus poderão até desabar, para um lado ou para outro, mas, se todos procederem sem temor nem favor, como aconselhava James Horton, a democracia e os direitos que nos protegem sairão fortalecidos.