Título: O conto da ética
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/09/2007, Notas & Informações, p. A3

Se há uma classe de pessoas que fazem da mentira, mais do que um hábito, uma arte, são naturalmente os políticos - e, entre eles, os mais exímios tapeadores são, obviamente, os mais cínicos, que não enrubescem quando passam seus contos-do-vigário e assim evitam, ou adiam, o descrédito. No fundo, assim como se diz que a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude, a mentira bem contada é uma forma de respeitar a inteligência alheia. Pois foi rigorosamente o contrário disso, ou seja, um escárnio à inteligência, uma zombaria de quem as ouvem ou lêem, as patranhas proferidas pelo presidente Lula ao ser indagado pelos jornalistas sobre a fragorosa derrota que sofrera na véspera, quarta-feira, no Senado. Por 46 votos a 22, a Casa derrubou a medida provisória que havia criado a Secretaria de Planejamento de Longo Prazo, cujo titular era o controvertido acadêmico Roberto Mangabeira Unger.

Treze dos 16 senadores peemedebistas presentes (de uma bancada de 19) votaram contra o governo do qual o seu partido faz parte, mas não tanto quanto gostariam os que, por isso mesmo, resolveram aplicar um corretivo no presidente - ou ¿uma rasteira¿, na expressão do coordenador político do Planalto, ministro Walfrido dos Mares Guia. A cobrança por mais cargos e mais verbas, a eterna reivindicação dos fisiológicos que compõem a grande maioria da coalizão lulista, foi uma das causas da traição. (Na Câmara, o PMDB demandou mundos e fundos para aprovar a prorrogação da CPMF. Conseguiu o suficiente para se manter fiel - por enquanto.) O outro motivo do golpe foi o descontentamento com a tendência de setores petistas de se distanciar do presidente do Senado, Renan Calheiros, por ele não ter retribuído os votos que o salvaram da cassação, afastando-se do cargo.

Tudo isso é de pleno conhecimento do governo, dos políticos, dos jornalistas e da parcela mais bem informada da população, que ainda tem estômago para acompanhar o que se passa em Brasília. Se, apesar disso, se rememora aqui o episódio, é para mostrar por que Lula superou todas as façanhas do barão de Münchhausen na sua reação pública àquilo que, na intimidade palaciana, ele classificou de ¿deslealdade¿. Abordado pelos repórteres, à saída de um evento no Itamaraty, ele sacou da mais velha das platitudes políticas - aquela que a imprensa registra invariavelmente associada ao verbo desconversar. ¿A democracia é isso¿, desconversou o presidente. ¿Você ganha uma, perde outra.¿ Naturalmente, os jornalistas insistiram, e ele, entre calar-se e confeccionar uma desculpa palatável, preferiu assumir sua conhecida pose de professor, e, com a cara mais séria do mundo, tentar passar o ¿conto da ética petista¿, que contém três patranhas.

Uma, que o PMDB ¿não pediu nada¿, como se os peemedebistas não vivessem explicitando os seus pedidos, com a maior naturalidade, ao primeiro repórter interessado em conhecê-los. Outra, digna do Livro Guinness, merece transcrição integral. ¿Eu não barganho. Eu faço acordo programático, acordo com o partido, mas não é possível você ficar barganhando cada votação que vai para o Congresso Nacional.¿ Barganha, sim. A cada votação. E já cansou de dizer que sem isso ninguém governa este país - o que não é uma mentira. No seu caso, a barganha suprema entrou para a história com o aumentativo mensalão. A terceira patranha presidencial foi a de que ele não teme que o contravapor do Senado interfira na votação da CPMF na Casa (depois da deliberação em segundo turno, na Câmara, marcada para o dia 9 de outubro). Teme - e como! Porque o governo não tem, fechados, os 49 votos do quórum qualificado necessário para fazer passar a emenda que prorroga o tributo.

Daí o assédio aos senadores do DEM propensos a se bandear para uma sigla governista. E daí a preocupação, há tempos perceptível no Planalto, com os efeitos da crise, em que os processos contra Renan Calheiros mergulharam o Senado, sobre a tramitação da CPMF. Naturalmente, o senador alagoano tem tentado capitalizar o resultado desastroso para o governo como prova de que ainda dá as cartas na Casa que insiste em presidir. Mas, se os senadores peemedebistas tivessem recebido a sua parte em cargos e emendas liberadas, dificilmente se rebelariam só para dar uma força ao correligionário ameaçado.