Título: Renancentismo
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/10/2007, Espaço Aberto, p. A2

Os dias em curso certamente marcarão a história do Senado, em face das denúncias que alcançaram o presidente da Casa e dos desdobramentos que se seguiram, estes mais marcantes pelas suas conseqüências bem mais profundas e também mais duradouras que o mandato do denunciado, seja como senador ou presidente da instituição.

A conseqüência mais importante é que o Senado renasceu muito feio perante a opinião pública, que tinha dele outra imagem. Não que fosse boa em termos absolutos, pois, como o Legislativo em geral, seus membros sempre foram distantes do povo e mostram pragas típicas desse Poder agravadas, como o excesso de senadores por Estado, os suplentes não votados, a ociosidade de muitos e as turbinadas mordomias de todos. Mas pelo menos o Senado não tinha uma imagem tão ruim como a da Câmara dos Deputados, da qual a visão comum era a de que, digamos, ali pontificavam mais personalidades ousadas nos seus maus comportamentos pessoais e arremessos contra instituições em tese republicanas.

Recorde-se que no escândalo político anterior de maior dimensão, o do mensalão, a Câmara foi o grande teatro e alguns deputados, os atores principais. Só agora, por conta do tal mensalão mineiro, é que o mesmo noticiário volta ao Senado, mas restrito a um único senador.

Certa vez, falei sobre a Previdência Social a uma comissão de senadores, mas vários se interessaram mais por uma tabela de esperança de sobrevida pessoal por faixa etária, que mostrei na ocasião, cada um deles querendo saber a sua. Assim, é possível que a sua idade média mais elevada relativamente aos membros da Câmara também respondesse por essa visão mais condescendente da opinião pública, imaginando que fosse fonte de sabedoria e juízo.

Esse menor desprestígio da Casa foi seriamente agravado pelo Renancentismo. O nome também lembra a Renascença, período entre os séculos 14 e 16 que, na Europa, marcou um renovado desenvolvimento das artes, da literatura e da ciência. Um dos movimentos foi de retorno às artes clássicas. Aqui, o Senado renasceu mais naquilo que mostra, pois ao revolver as entranhas da Casa o Renancentismo trouxe à superfície a prática de artes e ofícios clássicos da política brasileira, como o compadrio, o corporativismo, o fisiologismo, a falta de compromissos com programas partidários e com os eleitores, o desvio indecoroso de pregações éticas antes enfatizadas nos discursos, e por aí afora.

Vendo o imbróglio em retrospecto, nota-se que sua discussão entre os senadores esteve centrada em avaliar, como quebra de decoro parlamentar, se, conforme a primeira denúncia, a pensão devida à jornalista que teve uma filha com o senador Calheiros foi paga com recursos de uma empreiteira. Agora, tendo escapado à punição por essa denúncia, ele enfrenta outras, a coisa se prolonga e o prestígio do Senado afunda cada vez mais.

Não se afastando da presidência enquanto corriam e ainda correm esses processos, mantendo a posição como instrumento de defesa e para convencer seus pares a absolvê-lo, e expondo o Senado a um enorme desgaste institucional, o senador Renan Calheiros cometeu falta muito grave, que por si mesma justificaria a perda do mandato. Esta é a questão que deveria ser discutida e votada por seus pares, independentemente do desfecho das denúncias até aqui apresentadas.

Qualquer organização que se preze, quando diante de problema semelhante, faz isso com seus dirigentes, se estes por si mesmos não se afastam enquanto as denúncias são apuradas. Até no Corinthians, longe de um primor de organização, há poucas semanas seu presidente deixou o cargo, pressionado a fazer isso.

Há pessoas que se prezam e há as que também prezam as instituições a que servem, mas isso não vale no Renancentismo. Uma esdrúxula combinação de atitudes e interesses pessoais e grupais está afundando o que restava de prestígio ao Senado, o que é reconhecido por alguns de seus próprios membros. Assim, na terça-feira, neste jornal, o senador Cristovam Buarque, reagindo à tentativa de designação de um único senador da ¿tropa de choque¿ Renancentista para relatar dois processos contra o presidente da Casa, afirmou que ¿o Senado está se desmoralizando e não se atenta para isso¿.

Dias antes, um senador que assumiu o cargo na condição de suplente piava como que suplicando favores do Executivo, a dizer que seu grupo, de ¿franciscanos¿, se contentaria com reciprocidades comparáveis a chinelinhos. Por essa e muitas outras, a imprensa já identifica, também no Senado, o chamado ¿baixo clero¿, anteriormente tipificado na Câmara.

Ainda quanto a suplentes de senadores, o Renancentismo também trouxe à tona as distorções do processo eleitoral que os escolhe sem votação, tornando notórias figuras como Sibá Salgado e Wellington Machado. Troquei os sobrenomes, o leitor percebeu?

Como economista, vejo que o que efetivamente está em jogo é a prorrogação da CPMF, com o Executivo e seu principal partido, o PT, orquestrando toda uma baixaria em matéria de ¿negociações políticas¿, pois aceitam tudo, inclusive a permanência de personagens que no passado viam como abjetas, menos cessar a dinheirama que sustenta sua gastança. Se a torneira da CPMF fosse fechada, o governo federal enfrentaria um autêntico ajuste fiscal, em lugar de enganar o povo com o ilusionismo de seus superávits primários construídos em cima do aumento da carga tributária.

De qualquer forma, também há no Renancentismo males que vieram para bem. Em lugar de se iludir com o Senado e senadores que aparentavam não ser o que são, é melhor ver seus males transparentes, pois indicam também mais um alvo para indispensáveis mudanças.