Título: Molécula de pimenta gera anestesia que não imobiliza
Autor: Amorim, Cristina
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/10/2007, Vida&, p. A22

Ação da capsaicina, responsável pelo ardor do fruto, é direcionada só a nervos sensíveis à dor, sem afetar células motoras, o que evita paralisia

Imagine tratar um canal sem sentir dor e sem sair do consultório do dentista com o rosto paralisado. Esse é o objetivo de uma pesquisa publicada hoje na revista britânica Nature (www.nature.com), que usa a molécula responsável pelo ardor das pimentas, a capsaicina, para atingir o objetivo.

Três cientistas ligados à Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, conseguiram criar um anestésico que age somente nos nervos que mandam o sinal de dor ao cérebro, sem afetar as células motoras vizinhas.

Isso porque normalmente os anestésicos atingem todas as células nervosas de determinada região do corpo, sem distinguir quem é quem. O resultado é que, além de a dor ir embora por um tempo, também somem a sensibilidade ao tato e o controle de movimentos. Essa tem sido a regra desde que a anestesia geral foi aplicada pela primeira vez em cirurgia, em 1846.

TIRO CERTEIRO

Para fugir disso, o trio trabalhou especificamente com os nervos sensíveis à dor. Desde a década de 1970 sabe-se que esses neurônios específicos possuem poros nas membranas. Eles funcionam como canais que abrem e fecham para permitir a passagem de determinadas moléculas. Tal característica é exclusiva - esses poros ou canais não existem nos outros neurônios, como os motores.

Para atingir apenas as células sensíveis à dor, os cientistas tinham de levar em conta dois passos: abrir os canais para que o anestésico entrasse e usar uma substância que fosse inócua aos outros neurônios.

Foi quando lembraram do QX-314, nome de um derivado do popular anestésico lidocaína. Ele é pouco eficiente quando aplicado pelos métodos tradicionais, porém a situação é outra ao ser levado para dentro dos neurônios certos: ele consegue interferir na corrente elétrica emitida pelas células nervosas, aquela que manda a mensagem ¿aqui dói¿ até o cérebro.

O segundo passo seria forçar a passagem. É quando entra a molécula da pimenta. A capsaicina funciona como uma chave-mestra e consegue abrir esses poros. Assim, as duas moléculas aplicadas juntas - a lidocaína QX-314 e a capsaicina - foram capazes de conter a dor sem atrapalhar os movimentos.

TESTE

A experiência foi feita em ratos. Eles primeiro receberam uma aplicação das duas moléculas nas patas e andaram normalmente em uma placa quente, sem apresentar muita sensibilidade ao calor excessivo.

Num segundo momento, os cientistas aplicaram a combinação química no nervo ciático dos animais e espetaram suas patas, sem que qualquer reação fosse esboçada. Ao mesmo tempo, os roedores continuaram a se mover tranqüilamente, sem mostrar nenhum comprometimento motor.

O grupo está confiante de que a estratégia pode ser transferida para tratar pessoas com o avanço do estudos. ¿Os neurônios sensíveis à dor são parecidos em ratos e em humanos¿, diz Bruce Bean, um dos pesquisadores. Para Clifford Woolf, outro autor do estudo, a técnica ¿poderia ser levada a muitas operações¿.