Título: A arte de planejar o passado
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/10/2007, Notas & Informações, p. A3

O Brasil precisa de ¿uma nova rodada de geração de empresas estatais¿, afirmou num artigo ominoso o recém-nomeado presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann. O texto seria apenas curioso como ilustrativo de uma mentalidade, se não fosse assinado por um dos escolhidos pelo governo para traçar o roteiro da economia nacional para os próximos 15 anos.

Pochmann, professor da Unicamp, foi indicado para o cargo pelo então chefe da extinta Secretaria de Planejamento de Longo Prazo (Sealopra), Roberto Mangabeira Unger, recém-convertido em ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos. Nomeado para comandar um dos, até agora, mais respeitados centros de pesquisa e análise da economia brasileira, o professor acena com uma ¿reinvenção do mercado¿ a partir de uma redefinição do papel do Estado.

Seu artigo começa com uma crítica do período rotulado como neoliberal e marcado, segundo ele, pelo esvaziamento do Estado, pelo enfraquecimento do setor privado e pelo aumento da distância entre o Brasil e as economias mais avançadas. Nessa parte, as poucas observações pertinentes são soterradas por um gigantesco entulho de impropriedades. Nenhuma referência é feita ao trabalho de estabilização de uma economia desorganizada pela irresponsabilidade e pela inépcia de políticas auto-intituladas desenvolvimentistas.

Para começar, o setor privado não é hoje mais fraco do que antes da abertura econômica e da privatização. Ao contrário: as companhias aprovadas no teste da liberalização competem como nunca no mercado internacional e têm mostrado vigor apesar do câmbio valorizado. São tecnicamente modernas, fabricam produtos de nível internacional (porque a proteção é muito menor) e adaptaram-se à vida sem inflação.

Com raras exceções, as empresas privatizadas cresceram, modernizaram-se e várias conquistaram status de multinacionais. As siderúrgicas que formavam a catastrófica Siderbrás estão entre as mais eficientes do mundo e vêm criando bases de valor estratégico em vários países. A Vale do Rio Doce é a terceira empresa de mineração do mundo. A Embraer diversificou sua produção e compete em mais de um segmento da indústria aeronáutica.

Estrangeiras ganharam espaço principalmente na área de telecomunicações, com resultados espetaculares. Poderiam ter investido mais na eletricidade se, para essa área, ainda sob controle do governo, se houvesse traçado uma política menos preconceituosa. O problema, aí, não é a privatização, mas a indefinição do poder público.

Os investimentos ainda são insuficientes para as necessidades nacionais, mas não porque o setor privado se tenha tornado mais tímido. Também nesse caso os fatos desmentem o presidente do Ipea. É absurda a imputação da queda do investimento às privatizações. Em primeiro lugar, o governo pouco investe porque se recusa a conter o gasto corrente, cada vez mais pesado e mais improdutivo.

Em segundo lugar, o capital particular refreia sua participação na infra-estrutura e nos serviços de utilidade pública porque as autoridades, durante a gestão petista, foram incapazes de ampliar a cooperação entre o setor público e o privado, como mostram o atraso dos leilões de rodovias, a demora na implantação das Parcerias Público-Privadas e o emperramento do programa elétrico.

¿Nas décadas de 1950 e 1960¿, escreveu o professor Pochmann, ¿o País demonstrou maturidade política tanto para privatizar o que seria função do setor privado (setor automobilístico) quanto para fortalecer com recursos públicos o que deveria ser estratégico ao desenvolvimento (sic) nacional (elétrico, petróleo, telefonia, entre outros).¿ Ora, o setor automobilístico não foi privatizado, simplesmente porque nunca foi estatal. Foi criado no governo Juscelino com empresas trazidas de fora.

Se o longo prazo for planejado com base nessa percepção do passado, os brasileiros correrão o risco de ver a história repetir-se não como farsa, mas como tragicomédia.

A criação da efêmera Secretaria de Planejamento de Longo Prazo, para acomodar um companheiro de partido do vice-presidente, já foi uma farsa. A subordinação do Ipea a essa Secretaria foi um erro que poderá custar caro ao País. O presidente da República teria feito um bem ao Brasil se referendasse a liquidação da Sealopra pelo Senado e devolvesse o Ipea ao Ministério do Planejamento.