Título: Disputa entre Peru e Chile expõe os conflitos ocultos da América Latina
Autor: Dias, Cristiano
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/10/2007, Internacional, p. A18

Continente que fala em integração ainda não resolveu pendências básicas como as fronteiras entre os vizinhos.

Há uma semana, o governo peruano anunciou que apresentará em novembro uma denúncia contra o Chile na Corte Internacional de Justiça, em Haia, na Holanda. O Peru insiste em redesenhar sua fronteira marítima com o vizinho, reacendendo a hostilidade latente entre os dois países e escancarando os distúrbios de um continente que esconde muito mais conflitos do que se imagina.

'A disputa entre Chile e Peru é um retrato da principal contradição da América Latina, um continente que fala em integração, mas ainda não definiu questões básicas como as fronteiras de seus Estados', afirmou por telefone ao Estado a chilena Ximena Fuente Torrijo, professora de direito internacional da Universidade do Chile. Contenciosos como esse, segundo ela, levam em média de quatro a seis anos para serem julgados em Haia.

A birra do Peru com o Chile é um resquício da Guerra do Pacífico (1879-1883) e envolve também a Bolívia. O conflito pela exploração de recursos naturais no Deserto do Atacama terminou com os chilenos tomando o porto de Antofagasta dos bolivianos e invadindo as cidades peruanas de Arica, Tacna e Lima.

O Chile devolveu Lima e Tacna, mas ficou com Arica e Antofagasta. Desde então, Bolívia e Chile vivem às turras. La Paz não mantém relações diplomáticas com Santiago e exige uma saída para o mar, reivindicação que se transformou em base fundamental da política externa boliviana.

BARRIL DE PÓLVORA

O Peru também nunca engoliu a vitória chilena. Fixada a fronteira terrestre, o país transferiu sua frustração com a derrota para os limites marítimos. Os peruanos reivindicam uma linha oblíqua, que lhes acrescentaria cerca de 35 mil quilômetros às suas águas territoriais. O Chile não abre mão de uma linha paralela, dizendo que o caso já foi resolvido por tratados assinados na década de 50.

A questão chilena-peruana é um caso de fronteira lateral marítima. O embaixador Rubens Ricupero, que participou como mediador de vários acordos entre países latino-americanos, explica que existem duas correntes no direito internacional. Uma defende que a linha de fronteira deva ser perpendicular à costa; como quer o Chile. Outra, que a fronteira seja uma mediana; como exige o Peru.

'A Convenção da ONU sobre Direito do Mar recomenda a negociação. Não existe uma doutrina única no direito internacional e não dá para saber como a Corte vai agir', disse Ricupero. 'Tudo vai depender da opinião individual de cada juiz e da documentação apresentada pelos dois países.'

A cautela do Peru em levar a questão para a Corte Internacional de Justiça tem explicação. Tramita desde 1999 em Haia um caso muito parecido com o peruano, envolvendo Honduras e Nicarágua. A batalha é a mesma, entre linhas perpendiculares (Honduras) e medianas (Nicarágua). O caso começou a ser julgado em março e a decisão serviria de bússola para peruanos e chilenos.

Apesar da retórica oficial, que repete à exaustão a cantilena da integração, conflitos de fronteira entre países vizinhos não faltam na América Latina. Só a Nicarágua está envolvida em três; embora faça fronteira com apenas dois países. Além da rixa com Honduras, o país ainda não resolveu seus limites com a Costa Rica e reivindica uma dúzia de ilhas do Caribe colombiano, que ficam a 600 quilômetros da Colômbia e a apenas 150 de seu litoral.

As relações da Colômbia com seus vizinhos também são péssimas. O Equador reclama da fumigação indiscriminada de herbicidas feita pelos colombianos para destruir plantações de coca na fronteira.

Quito alega que o veneno é levado pelo vento para o lado equatoriano. Em dezembro de 2006, retirou seu embaixador de Bogotá. Em março, soldados dos dois países trocaram tiros na selva. Dois militares equatorianos morreram.

A disputa mais séria da Colômbia, no entanto, é com a Venezuela. Em 1987, os vizinhos quase chegaram às vias de fato quando navios colombianos entraram no Golfo da Venezuela, que dá acesso ao Lago de Maracaibo, área disputada pelos dois países.

Caracas também não reconhece sua fronteira oriental com a Guiana e reivindica três quartos do território vizinho. A questão parecia esquecida até que o presidente Hugo Chávez voltasse a tocar no assunto e inserisse a região como parte da Venezuela em sua Constituição Bolivariana de 1999.

'Questões territoriais mal resolvidas podem sobrecarregara a diplomacia de um país', afirmou Lilian Laborde, professora de direito internacional da Universidade de Buenos Aires. 'O maior desafio da política externa da Argentina, por exemplo, é a questão das Malvinas, um conflito sem solução que ainda ocupa boa parte do tempo dos diplomatas argentinos.'

Desde que uma empresa finlandesa começou a construção de uma fábrica de celulose na margem uruguaia do Rio Uruguai, em 2005, os argentinos não se entendem mais com seus vizinhos do outro lado do Prata. Embora seja uma questão ambiental - e não de limites - também foi parar na Corte Internacional de Justiça, no ano passado, e abriu uma nova crise no processo de integração do Mercosul.

'As questões de limites na América Latina não foram resolvidos no momento certo e viraram um problema crônico', disse Ricupero. 'São temas que ficaram latentes e, de repente, por uma razão qualquer, uma disputa eleitoral, um presidente nacionalista ou a expectativa da exploração de alguma riqueza, voltam à tona. É como um bacilo incubado.'

Se depender de políticos nacionalistas e crises internas, a Corte Internacional de Justiça receberá processos da América do Sul por um bom tempo. No dia 20, o tribunal emitiu sua primeira decisão que envolvia limites marítimos de países sul-americanos, resolvendo a fronteira entre Guiana e Suriname.

PAX BRASILIANA

Em contraste com o restante do continente, o Brasil resolveu suas questões fronteiriças em 1909, quando o então ministro das Relações Exteriores, o Barão do Rio Branco, assinou o último de seus grandes acordos de limites com o Uruguai.

Assim, o Brasil tornou-se exceção na América do Sul. Com as mãos livres, o País passou a mediar conflitos. Negociou o fim da Guerra do Chaco, entre Bolívia e Paraguai, nos anos 30, evitou um conflito aberto entre Peru e Equador, nos anos 40, e participou dos entendimentos entre Argentina e Chile, que resolveram a questão do Canal de Beagle, nos anos 80.