Título: A China não dá comida
Autor: Sardenberg, Carlos Alberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/10/2007, Economia, p. B2

Dez por cento dos chineses vivem abaixo da linha de pobreza, um índice melhor do que o verificado no Brasil, que registra 38% de pobres e 16% em estado de pobreza extrema. Na China não tem Bolsa-Família nem programas assistenciais e Previdência pública, que pagam um salário mínimo para 10% da população.

Esse tipo de comparação é sempre difícil, mas é universalmente reconhecido que a China todo ano retira milhões de pessoas da pobreza. E faz isso com educação (em geral, paga) e com empregos.

É o contrário do que se faz por aqui. Outro dia, defendendo o pesado aumento de gastos públicos, o presidente Lula fez uma defesa vigorosa dos programas sociais, em especial do Bolsa-Família, porque ¿o mais importante é a gente dar comida para a parte mais necessitada do povo brasileiro¿.

Um modelo econômico que fornece educação de qualidade e gera empregos não precisa dar comida, pois fornece às pessoas meios mais eficientes e duradouros. Com uma profissão e um emprego, a pessoa cuida de sua vida e, ainda mais, gera valor para a sociedade com seu trabalho.

Já a pessoa que recebe o Bolsa-Família só tem a situação melhorada enquanto continuar recebendo o auxílio mensal. Na verdade, a assistência social, com o governo dando dinheiro às pessoas, é uma demonstração da falta de dinamismo de um país. Perdurando, esse atraso torna a assistência uma necessidade permanente, quando deveria ser uma ação emergencial.

Mas o governo está promovendo o crescimento econômico, assegura Lula, e também fará ¿muitas estradas, muitos portos, muitos aeroportos¿.

E aqui reside a questão do momento para a economia brasileira, a alternativa para os gastos públicos: programas sociais (distributivismo) ou investimentos em infra-estrutura (dinamismo e acumulação). Recentemente, o presidente condenou os que querem transformar todo o dinheiro público em estradas e portos, porque, repetiu, o gasto social é, na verdade, o melhor investimento, pois se trata de investir no ser humano.

Há muita confusão aqui, de modo que convém separar as coisas. Gastar em educação e saúde é investir na pessoa e capacitá-la para ganhar a vida. O governo brasileiro, desde antes de Lula, gasta bastante nessas duas áreas, mas reconhecidamente gasta mal. Basta ver o desempenho medíocre de nossos alunos nos testes internacionais. Basta ver as seguidas crises dos serviços de saúde. Portanto, nesse item, não falta investimento, falta qualidade de aplicação.

O presidente também está errado quando diz que, em nome do social, precisa contratar mais funcionários e gastar mais. Mesmo porque o gasto com funcionários (por aumento de salários e de número de pessoas) tem crescido ano a ano, sem que se perceba ganho significativo nos serviços.

O Bolsa-Família, sim, tem apresentado resultados eficientes no que se refere a melhorar a vida dos mais pobres. Mas não garante futuro aos beneficiados.

Além disso, o aumento dos gastos no social reduz, sim, o investimento do governo em infra-estrutura - este um gasto que gera empregos de imediato e aumenta a capacidade de crescimento futuro.

O presidente Lula promete o que não pode cumprir quando diz que seu governo vai dar muita comida e fazer muitas obras. Mesmo governos de países ricos não têm recursos para fazer tudo isso. Em outras palavras, é preciso fazer escolhas o tempo todo.

Embora diga que não, o governo Lula fez sua escolha. Neste ano, o governo federal está gastando 19% do Produto Interno Bruto (PIB) em Previdência, área social e funcionalismo e custeio da máquina. Em investimentos, se conseguir gastar todo o previsto no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), será 0,9% do PIB.

Até algum tempo atrás, o presidente e seus principais ministros ainda toleravam o discurso segundo o qual era preciso conter o gasto público e melhorar a eficiência geral do sistema. Essa preocupação, que era muito nítida ao tempo de Antonio Palocci no Ministério da Fazenda, gerou projetos interessantes. Por exemplo, o Projeto de Lei Complementar (PLC ) nº 1, enviado neste ano ao Congresso Nacional, e que estabelece o seguinte: o gasto com pessoal da União, em um determinado ano, será o equivalente ao que se gastou no ano anterior, mais a inflação (medida pelo IPCA), mais 1,5% de aumento real.

Ainda em março deste ano, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, foi à Câmara dos Deputados defender o projeto. Sua exposição ainda está na página do Ministério (www.planejamento.gov.br) e merece ser lida. Ali está explicado como os gastos com pessoal têm crescido fortemente e de maneira imprevisível, de modo a alcançar hoje 26% da despesa primária (exclui pagamento de juros).

Pela regra prevista no PLC, a folha total de 2008 poderia subir apenas 5,56% nominais, considerando-se inflação de 4%. Mas o projeto de orçamento para 2008, já encaminhado ao Congresso, prevê que os gastos com o pessoal terão um aumento nominal de 10,8%. Vale este.

Embalados pela popularidade e pelo bom momento da economia nacional, Lula e seus colaboradores recuperaram o antigo DNA petista: tudo se resolve pelo Estado, quanto maior, melhor.

Por isso convém prestar atenção nas privatizações atuais do governo Lula. Concedeu um trecho de quase 800 quilômetros da Ferrovia Norte-Sul para a Vale do Rio Doce e tem programado a concessão de sete trechos de rodovias federais, para as quais devem concorrer inclusive investidores privados estrangeiros. Sem contar a concessão das usinas do Rio Madeira.

Pode ser a saída. Quem sabe, pressionado pela falta de dinheiro para grandes investimentos, o governo decida abrir cada vez mais a área de infra-estrutura, incluindo os aeroportos, para a iniciativa privada.