Título: O Supremo e a vitória das tricoteiras gaúchas
Autor: Cavalcanti, Sandra
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/10/2007, Espaço Aberto, p. A2

Elas morreram no triste acidente que, em julho, trouxe tanta amargura a todos nós. Eram senhoras gaúchas, valentes, setentonas, atrevidas e alegres. De forma quase quixotesca, elas vinham enfrentando, tanto no seu Estado, quanto no resto do País, a insensibilidade e o cinismo das autoridades públicas na questão do pagamento de precatórios. A maioria delas se nega a cumprir as decisões da Justiça e se recusa a pagar essas dívidas. Praticamente todas elas, nos mais diversos escalões, insistem nesse tipo de calote, mesmo diante de sentenças claras e definitivas.

As valentes tricoteiras exigiam uma solução, principalmente para os precatórios de natureza alimentar, isto é, aqueles provocados por erros e omissões em relação a salários, pensões, vencimentos e aposentadorias.

O País inteiro sabe que as autoridades de nossa Pátria amada insistem em não pagar a seus perseguidos credores aquilo que os tribunais já definiram como direito líquido e certo. Essas autoridades fazem isso com a maior desfaçatez porque sabem que os governos nunca vão parar nas listas de maus pagadores nem vão à falência, como as empresas privadas. Dificilmente alguém consegue obter deles, por via puramente administrativa, o cumprimento decente e justo do acerto de suas pendências. Os litígios acabam indo parar sempre nos tribunais, onde as decisões, demoradas e caras, muitas vezes chegam muito tarde.

Pode-se dizer, sem susto, que as administrações públicas, no Brasil, são as campeãs mundiais de todo tipo de calote nesta área. Para elas, as leis não existem e os direitos dos cidadãos são uma piada. Os mesmo cofres públicos, sempre tão insaciáveis quando se trata de arrecadar o dinheiro do povo, estão sempre fechados quando se trata de pagar o que devem aos seus credores. Infelizmente, isso faz parte da nossa chamada ¿cultura bandida¿...

Ao fim de longa luta na esfera administrativa, o paciente credor consegue que o seu legítimo direito seja também plenamente reconhecido pelos tribunais. Nessa etapa, ele recebe do Poder Judiciário uma certidão que confirma o seu direito, obriga o devedor ao pagamento, fixa os valores e estabelece prazos. Essa certidão, que, na verdade, é uma espécie de título de crédito, é conhecida pelo desmoralizado nome de precatório.

Desmoralizado por quê? Porque é um papel sem força, desrespeitado de todos os modos. Quando o devedor é entidade pública, ele diz que só paga os precatórios se os recursos para esse fim forem previamente alocados nos respectivos orçamentos. E como os orçamentos, em nosso país, não passam de meras peças autorizativas, as autoridades têm como armar seus sistemáticos calotes e deixar os credores sem meios de reclamar. Alegam falta de recursos, adiam para outra oportunidade e vão empurrando com a barriga.

O maior drama, porém, é que esses precatórios, em sua maioria, se referem a pensões, aposentadorias, salários, tempo de serviço não contado, férias roubadas, promoções omitidas. Até mesmo no caso dos precatórios de natureza patrimonial, os credores que não conseguem receber são pessoas pobres ou remediadas que tiveram seus pequenos imóveis desapropriados para obras públicas. Enfim, injustiças intoleráveis para quem vive alegando preocupação com o social...

Na Constituição de 88, tentamos dar um tratamento mais justo a esta questão. Ficou estabelecido que o pagamento dos precatórios alimentares teria prioridade sobre os demais. O constituinte achava que não deveria haver, no País, nenhum precatório de natureza alimentar vencido e não pago. O esforço foi em vão. O Brasil deve hoje perto de R$ 62 bilhões em precatórios, dos quais mais de um terço são de natureza alimentar.

Para piorar ainda mais este quadro o atual ministro da Defesa, quando integrava o Supremo Tribunal Federal (STF), elaborou uma proposta de emenda constitucional inacreditável: as autoridades caloteiras teriam o direito de dar prioridade de pagamento aos credores que aceitassem reduzir os valores a que tinham direito! Quem gostou da sugestão foi, nada mais, nada menos, que o presidente do Senado, o discutido senador Renan Calheiros, que a subscreveu. Se essa emenda viesse a ser aprovada, adeus pagamentos de precatórios! Essa era a luta das valentes gaúchas, que o trágico acidente de Congonhas interrompeu. O grupo estava se dirigindo ao Senado, em Brasília, para alertar os distraídos, os ausentes, os insensíveis, os indiferentes, os distantes e, principalmente, os que se dizem preocupados com os dramas sociais, para lhes mostrar a imoralidade dessa emenda constitucional. Aprovada, ela daria às autoridades devedoras, principalmente prefeitos e governadores, a imunidade para retardar os pagamentos, sem nenhum risco de processo, de confisco de receita ou de intervenção.

Mas os caminhos de Deus são insondáveis. Um outro gaúcho entrou em cena e acabou com a cilada pretendida. O ministro Eros Grau, do STF, recentemente assegurou a uma pequena indústria gaúcha de móveis o direito de usar precatórios alimentares vencidos para pagar o ICMS devido. Com essa decisão o Poder Judiciário abriu um caminho racional, justo e novo. Esse caminho vai acabar com o sistemático calote que as autoridades públicas se acham no direito de aplicar aos credores. A decisão do ministro Eros Grau beneficia devedores e credores. Permite que os primeiros possam usar precatórios vencidos para reduzir ou compensar suas dividas com Estados e municípios. E permite aos segundos, os credores, se assim o quiserem, vender seus precatórios alimentares a empresas que, por sua vez, poderão usá-los para abater suas dividas com o Fisco.

A porteira do calote impune foi fechada. Acho que a luta das valentes tricoteiras gaúchas pode ter chegado ao fim. Que Deus Pai, em sua infinita bondade, permita que elas se alegrem com essa linda notícia, que os anjos levarão até elas.