Título: Doha ou Mercosul?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/10/2007, Notas & Informações, p. A3
Acordo global de abertura comercial ou fortalecimento do bloco econômico do Cone Sul? Doha ou Mercosul? Se, em algum momento das discussões da Rodada Doha, tiver de fazer essa escolha, o Brasil escolherá o Mercosul, afirmou o embaixador na Organização Mundial do Comércio (OMC), Clodoaldo Hugueney, numa das mais duras reações do governo brasileiro às pressões crescentes dos países industrializados por uma maior abertura dos mercados dos países em desenvolvimento aos produtos industriais.
Em negociações comerciais são comuns afirmações fortes e quem as faz está sujeito a ouvir respostas igualmente duras. Em resposta ao embaixador brasileiro, representantes dos países industrializados insinuaram que o Brasil quer transferir para o âmbito da OMC problemas internos do Mercosul que deveriam ser resolvidos pelos parceiros do bloco. O diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, que por causa de sua função evita tomar partido nas discussões, advertiu que as leis multilaterais se sobrepõem aos acordos regionais e que, em caso de conflito, os blocos regionais é que precisam se ajustar internamente.
¿O Mercosul precisa decidir o que vai fazer¿, reagiu o embaixador dos Estados Unidos na OMC, Peter Allgeier. ¿O que se está fazendo (com a posição anunciada pelo embaixador brasileiro) é colocar a OMC de cabeça para baixo. Essa proposta é contrária a tudo o que a OMC representa e aos objetivos do sistema comercial.¿ O representante da União Européia, Eckhart Gutt, respondeu com ironia. Se for o caso de ficar com uma união aduaneira, ele prefere ficar com a sua, a União Européia. E completou: ¿O Mercosul não entra nessa categoria (de união aduaneira).¿
Outros países, como Índia, China e África do Sul, além dos industrializados, têm utilizado um discurso duro na defesa de seus interesses comerciais. Aparentemente, também é isso que faz a diplomacia brasileira ao resistir à proposta dos países ricos na área industrial. Mas não está claro que essa resistência atenda aos interesses brasileiros.
Os países ricos propõem o corte de 66% das tarifas sobre produtos industrializados, podendo cada país escolher uma lista de produtos que podem ser protegidos. A lista é limitada a 10% dos itens importados, desde que o valor de suas importações não ultrapasse 10% do total importado. No Mercosul, o problema é montar uma lista que agrade a todos os membros. Produtos sensíveis para um não são para outros. O número de produtos que o Mercosul quer proteger é maior do que o limite que pode ser negociado.
Por isso, o Brasil e a Argentina, com o apoio da África do Sul, que faz parte da União Aduaneira da África Austral, propuseram que uniões aduaneiras formadas por países em desenvolvimento tenham mais flexibilidade na definição dos produtos sensíveis.
Para o Brasil, mais importante do que ampliar a lista é definir quais são os produtos que o Mercosul poderá proteger. A lista incluirá os itens que interessam ao Brasil ou atenderá predominantemente ao interesse dos demais sócios, em especial a Argentina? O governo Lula já fez várias concessões comerciais à Argentina. Concordou com a adoção de medidas protecionistas pelo governo Kirchner, até mesmo contra produtos brasileiros, e não se opôs às exceções à Tarifa Externa Comum (TEC), que caracteriza uma união aduaneira. Por que não concordaria com as imposições de Buenos Aires na definição dos produtos sensíveis da Rodada Doha?
São tantos os furos na TEC que já se propõe o retorno do Mercosul ao estágio anterior do processo de integração, de zona de livre-comércio. A alternativa para consolidar o bloco seria fortalecer a união aduaneira, caminhar na direção da integração econômica e permitir sua integração competitiva no mercado global.
Embora nada disso esteja sendo feito, o embaixador Hugueney afirmou que ¿o Mercosul é prioridade absoluta para o Brasil, por isso a negociação tem de tornar compatível a liberalização multilateral com a integração regional¿.
O discurso não comoveu os representantes de Paraguai e Uruguai, os outros membros plenos do Mercosul. Eles não vêem nenhuma vantagem na posição definida pelo embaixador brasileiro e, por isso, não demonstram interesse nela.