Título: A ascensão dos advogados
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2007, Internacional, p. A9
Os congressos do PC chinês não são apenas uma liturgia, um culto e uma cerimônia tediosa. Cada um traz uma marca forte na história do imenso país. Eles operam em dois registros interligados: de um lado, remanejam o Comitê Permanente do Politburo - portanto, os altos escalões dirigentes. De outro, assinalam as escolhas ideológicas para o período subseqüente. O 17º congresso não se furtará a essa tradição.
O presidente Hu Jintao, de 64 anos, que está à frente do partido há cinco anos, deverá ser mantido no posto. Nesse caso, terá de compor entre os reformistas que exigem uma democratização e os conservadores que se opõem visceralmente a ela. De idéias ágeis e índole obstinada, Hu Jintao terá de acomodar-se entre essas duas exigências abrindo outra via, uma espécie de ¿derivação¿: a ciência.
É bem possível que os estatutos do partido venham a integrar a ¿visão Hu Jintao de desenvolvimento científico¿, que seria então institucionalizada como o marxismo-leninismo, o ¿pensamento de Mao Tsé-tung¿ ou a ¿teoria de Deng Xiaoping¿. Com isso, a marcha para uma democratização, sem ser rejeitada, poderá ter de esperar um pouco mais.
Essa ascensão em glória da ciência entre as ferramentas da política seria flanqueada por um outro pensamento estratégico importante de Hu Jintao: a ¿construção de uma sociedade harmoniosa socialista¿. Essa fórmula pode parecer um tanto oca, retórica, mas na China retórica é assunto sério. Nesse caso, deve-se compreender que o PC, pelo que afirma seu chefe supremo, Hu, dispensa os ¿fatores de discórdia¿, isto é, a sacrossanta luta de classes? Que efeitos reais aguardam essa invocação da ciência?
Há dois anos, Li Lianzhong, do Comitê Central, teorizou esse recurso à ciência. Segundo ele, a China, após sua passagem ruidosa e brilhante à economia de mercado, presenciou o surgimento de distorções incômodas.
O crescimento ultra-rápido massacrou o meio ambiente e até algumas populações; a distância entre a renda no campo e na cidade tornou-se abismal; os direitos sociais são pisoteados longe de Pequim ou Xangai; três quartos dos investimentos culturais são engolidos pelas cidades, etc. A diferença de renda enoja. ¿Neste país, uma família de três pessoas vive ou com 60 mil yuans ou com 600 mil yuans¿, esbraveja o economista Guo Xingfang.
Segundo Hu, o ¿desenvolvimento científico e racional¿ é capaz de conjurar essas tensões e esses dramas. ¿É preciso empenhar-se num desenvolvimento harmonioso, completo e durável¿, declarou ele em 28 de julho.
Evidentemente, alguns garantem que esses desgastes poderiam ser reduzidos ou suprimidos mais seguramente pela democratização. Mas Hu, pelo que ele diz há cinco anos, ainda acha cedo demais para dar prioridade à democracia. Alguns analistas esperam que, na falta de uma autêntica democratização, a sociedade chinesa poderia, em cinco anos, recuperar flexibilidade, liberdade e respeito aos indivíduos por uma via inesperada: o crescimento do poder dos advogados.
Na China antiga, a casta dominante era a dos letrados. Mais tarde, com Mao Tsé-tung, viu-se a ascensão dos ¿revolucionários¿. Em 1992, começou a época dos engenheiros. No congresso de 2002, os engenheiros assumiram os postos de comando: Hu Jintao, Wu Bangguo, Wen Jiabao, Huang Ju, Zeng Qinghong, Li Changchun. Todos altos dirigentes são diplomados em engenharia; 68% dos membros do Politburo de 2002 são engenheiros.
O congresso deste ano deverá ver o aumento do poder das ciências econômicas e jurídicas pela representação dos advogados. Entre os 15 homens jovens (de 45 a 55 anos) que deverão ocupar os principais papéis, encontra-se apenas um engenheiro, mas contam-se quatro bacharéis e dois licenciados em direito, seis diplomados em ciências econômicas, dois graduados em história e até (milagre!) um em filosofia. Entre esses, os quatro que correm na frente são três juristas e um economista.
Está claro que a substituição do tempo dos engenheiros pelo dos juristas, caso se confirme, terá conseqüências. Os engenheiros são bons para obedecer - obedecer a quem lhes dá as ordens, mas também ao Plano, às leis da natureza, à resistência dos materiais. Os juristas são formados antes para criticar, objetar, refletir, contestar. E, se juristas são apaixonados pelos aspectos institucionais, engenheiros são mais afeiçoados aos grandes projetos.
Alguns esperam que esse aumento do poder dos juristas vá preparar a transição de uma sociedade dura, hierarquizada, centralizada, burocrática e autoritária (pós-comunista, em suma) para uma sociedade mais flexível, na qual a discussão se tornaria uma virtude e a conciliação dos interesses, um hábito.
Pode-se ir mais longe e esperar que a chegada dos juristas facilite o avanço para a democracia? Observemos apenas, sem acalentar esperanças excessivas, que as declarações pró-democracia são cada vez mais freqüentes até na imprensa do PC. Alguns personagens de peso chegaram a propor que a China se inspire em democracias da Europa e avance para a ¿social-democracia¿, chamada antes de ¿socialismo democrático¿. Mas tudo isso continua em estado de efervescência intelectual. Como um porta-voz do regime indicou ontem, não será este 17º congresso que entronizará a democracia.