Título: Vocação é formar pesquisadores
Autor: Nunomura, Eduardo; Menocchi, Simone
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2007, Vida&, p. A15

Interiorização ocorreu com a criação de universidades, que hoje têm pós-graduação de nível internacional

Dos 219 melhores cursos de mestrado e doutorado do País, 55 são do interior paulista. O campus central da Universidade de São Paulo (USP) é individualmente o que tem mais programas com conceitos 6 e 7 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior, algo esperado para a maior geradora de doutores no País. Mas, juntas, as universidades e instituições de pesquisa fora da capital já formam mais cientistas em centros com padrão internacional do que todas as escolas universitárias da metrópole. Se o interior fosse um Estado, produziria o dobro de mestres e doutores nota 10 saídos da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O desempenho do interior chama a atenção do ministro de Ciência e Tecnologia, o físico Sergio Machado Rezende. Em visita a São Carlos duas semanas atrás, ele ressaltou seu entusiasmo com as novidades da região. Lembrou que a interiorização do País ocorreu em pouquíssimos Estados e, em São Paulo, ela veio com o ensino superior. ¿A nossa tradição de ciência, tecnologia e inovação não existe. Entramos nessa área recentemente, mas o caminho para funcionar é levar as universidades e fazer as coisas acontecerem como ocorreu aqui.¿

Duas unidades da USP alavancaram o desenvolvimento regional. A duras penas, diga-se. Não era fácil convencer médicos a se mudarem para ser professores em tempo integral. A primeira faculdade de Medicina fora da capital teve sua aula inaugural em maio de 1952, numa antiga fazenda de café de Ribeirão Preto. Um ano depois, São Carlos realizava o primeiro vestibular para os cursos de Engenharia Civil e Mecânica. De 200 inscritos, só 39 foram selecionados.

As duas cidades agrárias descobriram um novo universo. E não ficaram só nisso. Zeferino Vaz, diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, recebeu a missão do governo estadual de criar uma escola superior com foco em pesquisas. Ele foi chamando amigos. Muitos deles eram cérebros que atuavam fora do País. Em 1966, a Universidade Estadual de Campinas foi criada.

Já o físico carioca Sérgio Mascarenhas, convencido a se mudar para São Carlos e implementar um curso de Física na escola de engenharia, encontrou uma cidade onde só se chegava por estradas de terra. Jovem cientista, virou persona grata entre políticos e fazendeiros. Aproveitou, nos encontros com eles, para convencer um deputado e então presidente da Câmara a trazer uma universidade federal. A primeira e até hoje única federal do interior, a UFSCar, foi criada em 1968.

Oito anos mais tarde veio a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, a Unesp, uma junção de institutos de ensino superior paulistas espalhados pelo interior e criados nas décadas anteriores. Incluía nesse círculo virtuoso de ensino e pesquisa cidades como Araçatuba, Botucatu, Franca, Marília e São José do Rio Preto. Assim políticos e fazendeiros do interior tiveram de conviver com cientistas e vice-versa.

Ex-reitor da UFSCar, o prefeito de São Carlos, Newton Lima (PT), rompeu um paradigma burro: a de que universidades só ensinam, empresários só lucram e políticos só governam. A prefeitura foi buscar na academia soluções para problemas citadinos, como a estação de tratamento de esgoto ou o monitoramento policial por câmeras. Dez dos 15 secretários são mestres ou doutores. ¿Antes de ser político, sou acadêmico, o que me dá esse respeito dos colegas e a obrigação de trazê-los para essa articulação.¿

Nos próximos anos, a cidade quer oficializar o título informal de capital da tecnologia. Criou um conselho municipal de ciência e tecnologia, construirá um galpão de ciência, dois centros de estudos de agricultura familiar e economia solidária, um hospital-escola. Abrigará um pólo de tecnologia e receberá rede de fibra ótica de altíssima velocidade. Só ela e Campinas terão o privilégio, fora as capitais brasileiras. Em São Carlos, são quase 200 empresas de base tecnológica.

OUTRO VETOR

São José dos Campos concorre com São Carlos nessa disputa. A começar pela Embraer, terceira maior exportadora do País, 23.600 funcionários e líder mundial na fabricação de jatos comerciais para até 118 lugares. Na falta de profissionais especializados, precisou criar um curso de pós-graduação. Forma 150 engenheiros aeronáuticos por ano. Todos com empregos garantidos. O parque industrial da cidade tem 1.250 empresas e a maioria atua nos setores aeroespacial, de telecomunicações, automotivo, farmacêutico e petrolífero.

Tudo começou na década de 50 com a criação do Centro Técnico Aeroespacial, de onde nasceram o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), a Embraer e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Outras empresas vieram no rastro. A Orbisat é uma delas. Com tecnologia 100% brasileira, a empresa investiu US$ 4,6 milhões para desenvolver um radar aerotransportado, hoje o mais preciso do mundo. Dois amigos do ITA, João Roberto Moreira Neto e Rogério Ferraz de Camargo, e um novo sócio, Benedito Nogueira, mandam no negócio. Neto doutorou-se na Alemanha, desenvolveu o primeiro radar aerotransportado na escala 1 para 50 mil e foi contratado pelo Centro Aeroespacial Alemão. Na volta, o trio criou a Orbisat.

O radar obtém imagens da superfície do planeta de cima de um avião. Pode ser usada para buscar bases de refino de cocaína no meio de florestas, grilagens em reservas ambientais e defender as fronteiras. Mineradoras e construtoras já têm o aparelho. Na Venezuela, mapeou o país em pouco mais de seis meses, o que no método tradicional levaria dez anos. ¿A Itália quer comprar um radar, mas estamos negociando. Para outros países e empresas, vendemos o serviço por ele realizado¿, conta Neto.

Em junho dois radares de busca e vigilância, também desenvolvidos pela Orbisat, foram adquiridos pelo Exército Brasileiro. São raposas do ar: farejam aeronaves em baixas altitudes num raio de até 60 quilômetros. Foram usados na segurança dos Jogos Pan-Americanos. Premiado pelas agências espaciais alemã e americana, o engenheiro Neto detém 42 patentes de tecnologia de sensoriamento remoto. E o trio nem cogita em largar o interior para produzir desenvolvimento de Primeiro Mundo em outra parte.