Título: O Senado no pós-Renan
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/10/2007, Notas e Informações, p. A3

Baseada de ponta a ponta em documentos incontroversos, a revelação, publicada domingo neste jornal, de que o recém-licenciado titular do Senado, Renan Calheiros, destinou R$ 280 mil do Orçamento da União de 2004 a uma empresa de fachada, cujo verdadeiro dono é um seu ex-assessor, tem tudo para ser a pá de cal sobre a pá de cal já lançada sobre as suas chances de voltar à cadeira de que desceu na última quinta-feira, teoricamente para reassumi-la de então a 45 dias.

Os fatos apurados pelo repórter Ricardo Brandt tornam ainda mais inconcebível do que já era a permanência na Casa do serial killer do decoro parlamentar, ainda que como um qualquer dos seus 81 integrantes. Mas é tudo menos plano e retilíneo o caminho que, em outras circunstâncias, desembocaria naturalmente na cassação do mandato e na suspensão por oito anos dos direitos políticos do soba alagoano marinado em denúncias de corrupção.

Na realidade, o espinho Renan só descerá da garganta do Senado se as suas principais bancadas conseguirem a proeza de se pôr de acordo sobre a sucessão do indecoroso, encontrando um nome de consenso apto a conduzir a instituição até a renovação da Mesa, no início de 2008 - o que seria o ideal. A alternativa para isso é uma disputa entre duas ou mais chapas que em nada contribuiria para a reabilitação moral da Casa.

Se PT e PMDB, de um lado, e governo e oposição, de outro, forem incapazes de acomodar seus antagônicos interesses, Calheiros poderá escapar da degola pelas frestas da cizânia entre as siglas. Diz com razão o goiano Demóstenes Torres, do DEM, que logo se verá ¿se o Senado quer ficar ou não com Renan¿. A resposta será dada ¿na votação do primeiro processo que chegar ao plenário¿, presumivelmente no começo de novembro.

Dependendo de como se movimentarem até lá os ponteiros da sucessão, Calheiros ou será absolvido, por gritante que seja a sua culpa, ou condenado, não só pelas provas que existem contra ele, mas pelo conjunto da obra.

A possibilidade de ser ele absolvido uma segunda vez e cassado mais adiante, em outras das atuais ou futuras representações, é surrealista demais para ser contemplada. Já a volta ao status quo anterior à licença teria toda a aparência de um suicídio coletivo do Senado.

Pela tradição, o PMDB, dono da maior bancada, com 19 senadores, teria direito assegurado ao cargo - o que não poupou o peemedebista Calheiros de enfrentar um adversário, o potiguar Agripino Maia, do então PFL, na eleição de 2006.

Ocorre que a agremiação não dispõe de candidatos em condições de unificar a base aliada e atrair uns tantos quantos votos da fronda oposicionista para liquidar a fatura com garbo. Os seus ¿homens bons¿, o pernambucano Jarbas Vasconcelos e o gaúcho Pedro Simon, são bons demais, por independentes, para o gosto da maioria adesista da bancada - e do governo. Já a candidatura do primeiro lulista, José Sarney, que apreciaria um segundo mandarinato, levaria o PSDB e o DEM à guerra.

A chance de um oposicionista substituir Calheiros seria a mesma de o presidente Bush receber o Nobel da Paz. Ela pode, porém, tornar menos ou mais íngreme a escalada de um aspirante do lado de lá. O PT flerta com a esperança de entronizar na presidência o companheiro no seu exercício, o acreano Tião Viana - idéia malvista no PMDB e fonte de dúvidas hamletianas na oposição.

Ela o enxerga como o homem adequado para o momento, por seu equilíbrio e propensão ao diálogo, mas como o homem errado para completar o mandato de Calheiros, pois o PT já detém o comando da Câmara. No Planalto, como sempre, a preocupação é o curtíssimo prazo: ter a Casa arrumada o suficiente para que a prorrogação da CPMF passe a tempo de vigorar no primeiro dia de 2008.

O governo custou a perceber que isso seria muito difícil enquanto Calheiros estivesse no poder. Agora, padece do desafio de influir numa sucessão para lá de enrolada. Já o interesse da sociedade é ver um Senado capaz de virar a página do escândalo abissal dos últimos 140 dias, reerguendo-se ao fazê-lo. Terão os senadores grandeza para tanto?