Título: Fantasias financeiras
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/10/2007, Notas e Informaçoes, p. A3

A aventura do Banco do Sul, invenção da dupla Hugo Chávez-Néstor Kirchner, não basta para satisfazer a vocação terceiro-mundista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em sua viagem pela África, ele decidiu convocar os países em desenvolvimento para criar instituições multilaterais capazes de substituir o FMI e o Banco Mundial, onde não há lugar, segundo ele, para a maioria das nações. Indagado sobre o assunto, em Washington, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, defendeu a proposta presidencial, apontando o Banco do Sul e o banco de desenvolvimento criado por países da Ásia como exemplos a seguir.

O exemplo do banco asiático é apenas mais um equívoco nessa comédia ideológica. Essa instituição é semelhante, por sua estrutura, ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), também tratado pelo governo brasileiro como entidade a serviço da dominação imperialista. São asiáticos 67 dos associados ao Banco de Desenvolvimento da Ásia (BDA). Além desses, há 19 acionistas de outras partes do mundo. As maiores cotas pertencem aos Estados Unidos e ao Japão, as maiores potências capitalistas do mundo. Juntos, os dois países detêm cerca de 31% do capital e pouco mais de 25% do poder de voto.

O exemplo asiático citado pelo ministro Guido Mantega corresponde, portanto, ao BID, uma instituição com longa experiência de atuação na América Latina e no Caribe, com bom volume de recursos para financiar projetos de modernização e de combate à pobreza. Tudo isso falta ao Banco do Sul, uma concepção oportunista de um governante faminto de poder associado ao chefe de um governo incapaz de rolar suas dívidas no mercado ou nas instituições multilaterais.

Já não se discute se é necessário reformar o FMI e o Banco Mundial e redistribuir o poder nas duas instituições. A discussão nasceu há anos, bem antes de o presidente Lula chegar ao Palácio do Planalto, em seminários no próprio FMI, onde economistas e funcionários de países em desenvolvimento denunciaram a desproporção entre o tamanho de algumas economias e sua participação no capital e no sistema decisório da instituição. Tornou-se clássica, nesse debate, a comparação entre México e Bélgica.

A reforma foi lançada oficialmente, enfim, no ano passado, sob a liderança do diretor-gerente Rodrigo de Rato. O primeiro passo foi uma redistribuição ad hoc de cotas, em benefício da China, do México, da Turquia e da Coréia. Segundo a justificativa oficial, tentou-se corrigir alguns desequilíbrios mais evidentes. Brasil e Índia ficaram fora dessa distribuição ad hoc e seus ministros protestaram. Mas o caso brasileiro era discutível. A participação do País no capital do Fundo é desproporcional, sem dúvida, ao tamanho de sua economia, mas, em contrapartida, o Brasil perdeu participação no produto mundial, por causa de seu baixo crescimento durante mais de 15 anos.

O governo brasileiro tem bons argumentos para batalhar por maior poder no FMI e em outras organizações multilaterais de financiamento, mas é bisonhamente ingênuo ao defender a criação de entidades paralelas ou alternativas àquelas tradicionais. Há uma enorme distância entre discutir a qualidade das políticas aconselhadas pelo Fundo, por exemplo, e propor a constituição de uma entidade empenhada em aplicar políticas vagamente definidas como favoráveis aos países em desenvolvimento. Como seria um FMI desenhado por governos pouco interessados em disciplina financeira e monetária? O Brasil deveria pôr dinheiro numa instituição desse tipo?

Pé no chão e menos fantasia são necessários tanto para a condução dos assuntos internos quanto para a defesa externa dos interesses nacionais - no FMI, na ONU ou na OMC. Mas a prudência tende a ficar em segundo plano, quando as coisas vão bem. O Banco do Sul é uma temeridade evidente. Tem bons motivos, portanto, quem se preocupa ao ver o governo empenhado na criação de um fundo soberano, para aplicação de reservas cambiais duramente acumuladas - afinal, embora o ministro Mantega garanta que os recursos do fundo não seriam usados para capitalizar o Banco do Sul, o fato é que não é ele quem dá a direção do Brasil nas relações com os regimes populistas de nuestra América. É preciso pensar muito antes de mexer na lei e ampliar as possibilidades de aplicação dos dólares amealhados pelo País.

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