Título: A China 'científica' de Hu
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/10/2007, Notas e Informações, p. A3
Visto pelos telescópios ocidentais, o Planeta China é a encarnação contemporânea e em escala colossal - como tudo mais nessa vastidão onde vive 1 de cada 5 seres humanos - do capitalismo selvagem produzido pela Revolução Industrial, com a diferença de ter sido obra de uma revolução comunista que há duas décadas importou o regime de mercado aberto, mas até hoje não dá sinais de pretender importar as instituições da democracia política e social a que esteve associado historicamente aquele regime. É também o maior fator potencial de agravamento da degradação do meio ambiente no mundo, na medida em que a sua economia, em todas as fases da cadeia produtiva e de consumo, reproduz desenfreadamente o modelo ocidental de exploração dos recursos energéticos apontado como a causa primeira das atuais mudanças climáticas cujos efeitos podem vir a ser catastróficos.
O planeta chinês é, ainda, um manancial de políticos, militares, burocratas e empresários corruptos perto dos quais os ¿barões ladrões¿, que estiveram na crista da onda da modernização da economia americana depois da Guerra da Secessão, formariam uma confraria de querubins. Mas, visto por lentes made in China, tudo isso como que sai de foco perto do panorama das portentosas transformações por que vem passando a civilização que entrou para a história como o supremo paradoxo entre o extremo refinamento cultural de suas elites e a extrema esqualidez de suas vastas massas. Nunca antes neste mundo, parafraseando o presidente Lula, as condições materiais de existência de tantas centenas de milhões de pessoas mudaram espetacularmente para melhor em tão pouco tempo - embora os beneficiários desse salto quântico ainda sejam apenas mais ou menos 1/3 da população de 1,3 bilhão.
A revolução dentro da revolução promovida no último quarto do século 20 por Deng Xiaoping (¿enriquecer é glorioso¿) - este sim o Grande Timoneiro com quem começou a metamorfose da esclerosada China agrária na mais dinâmica economia mundial - não dá sinais de arrefecimento. Do mesmo modo, porém, não há sinais de arrefecimento do poder do partido nominalmente comunista que, em parceria com o Exército, se confunde com o Estado chinês. A órbita desse planeta não o aproximará do mais glorificado modelo de enriquecimento político: a democracia da imprensa livre, direitos trabalhistas, pluripartidarismo, sufrágio universal¿ Eis o que deixaram entrever os 2.200 membros da elite do poder que esteve enclausurada na semana passada no Grande Salão do Povo, em Pequim, para o congresso do PCC, evento qüinqüenal que elege ou reelege o chefe do partido e presidente da República Popular.
Ele, por sua vez, anuncia - ou dita, conforme o alcance da sua hegemonia pessoal - a palavra de ordem para o período seguinte. O slogan a prevalecer até 2012, típico da peculiar sintaxe do sistema político chinês, é ¿visão científica do desenvolvimento¿, uma expressão não menos enigmática do que o pensamento de seu autor, Hu Jintao, o líder nacional que a nata dos seus camaradas elegeu pela primeira vez em 2002. ¿Visão científica do desenvolvimento¿ é um duplo saludo a la bandera, como dizem os argentinos: ao pretenso cientificismo do velho Marx e à verdadeira busca do domínio das novas ciências e tecnologias. A expressão é mais do mesmo implícito em outra palavra com fundas raízes na cultura chinesa: harmonia (como em ¿sociedade harmônica¿, ¿desenvolvimento harmônico¿). Traduz-se na promessa de reduzir as abissais desigualdades de renda nas cidades e entre o planeta urbano e o rural - que crescem no mesmo ritmo da economia.
É o social-desenvolvimentismo à chinesa, em que o primeiro termo vem a reboque do segundo. Hu enfatizou no discurso de abertura que a maior conquista dos últimos cinco anos, ou seja, a dele, foi ¿o desenvolvimento rápido¿. Foi mesmo. As exportações triplicaram (para US$ 969,1 bilhões). As reservas em moeda estrangeira praticamente quintuplicaram (para US$ 1,41 trilhão). O PIB per capita quase duplicou (para US$ 2.010). A meta de Hu é dar prioridade ao crescimento com a gestação de uma sociedade ¿moderadamente próspera¿, com renda por habitante de US$ 5 mil em 2020. E democracia - mas somente ¿intrapartidária¿, conforme a sua pitoresca delimitação.