Título: Doha de ponta-cabeça
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/10/2007, Economia & Negocios, p. B2

A Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) está à beira do precipício. Há clara indicação de que o assunto não ocupa posição prioritária na agenda dos grandes protagonistas. Não é fácil manter vivas negociações, cujos resultados efetivos estão na dependência de conjecturas quanto à renovação de Trade Promotion Authority pelo Congresso dos Estados Unidos. Mesmo que o governo Bush pretenda exercer alguma iniciativa vigorosa para salvar a Rodada, estará condicionado pela política interna, dominada pelas eleições presidenciais. Além disso, a negociação 'triangular' no G-4, envolvendo redução de subsídios agrícolas nos Estados Unidos, melhor acesso a mercados agrícolas na União Européia e redução de tarifas industriais nas economias do G-20, ainda parece encalhada. Isso a despeito de recente oferta dos Estados Unidos de redução de subsídios agrícolas, mesmo que dependente do nível de concessões dos países em desenvolvimento e sem limitação por produto.

A liderança do G-20 - África do Sul, Brasil e Índia - tem resistido vigorosamente a uma liberalização significativa de suas tarifas, especialmente as industriais. Mesmo o Brasil, menos protecionista, tem insistido de que não poderia ir além do que no jargão da OMC corresponde ao 'coeficiente 30 da fórmula suíça'. Isso corresponderia a uma redução das tarifas consolidadas industriais (máximas) de 35% para pouco mais de 16%. Para pôr a redução em perspectiva, deve ser lembrado que a tarifa média efetivamente aplicada pelo Brasil está hoje em torno de 10%, embora produtos como os autoveículos continuem a ser beneficiados com a tarifa de 35%. Além das resistências quanto à magnitude da redução, o G-20 tem insistido que necessita de maior flexibilidade para aplicar a fórmula de desgravação tarifária, excetuando produtos 'sensíveis', dado o menor nível de desenvolvimento relativo de seus integrantes. Os membros do Mercosul insistem ainda que características da sua iniciativa de integração requerem a exclusão de número maior de linhas tarifárias dos compromissos de desgravação.

As negociações são também prejudicadas pelas dificuldades de acomodação de interesses de países excluídos do G-4. É o caso de vários países desenvolvidos, quase todos comprometidos com grotescos níveis de proteção agrícola, entre eles o Japão. Diversos integrantes do G-20, menos comprometidos com o protecionismo, já explicitaram sua simpatia por proposta de redução de tarifas industriais mais ambiciosa. A convergência das economias menos desenvolvidas do G-90, com a posição do triângulo Brasília-Nova Délhi-Pretoria, embora tenha prosperado em termos de discurso, é bem mais nebulosa quando se trata de temas substantivos. E existem ainda as dificuldades relacionadas aos outros temas da agenda, que vão além de acesso a mercados.

É difícil perceber algum grande dano aos interesses nacionais, se o Brasil optasse por proposta de redução tarifária mais ambiciosa. O coeficiente 22 na fórmula suíça, por exemplo, ainda longe do coeficiente 10 mencionado pelos falcões nas economias desenvolvidas, corresponderia à redução da tarifa máxima brasileira para 13,5%. Os argumentos que são brandidos no Brasil quanto à necessidade de manter tarifa alta e preservar picos tarifários por causa do Mercosul não são convincentes. Alega-se que, dado o custo Brasil e a colcha de retalhos que é a legislação tributária vigente, a indústria instalada no País não teria condições de competir com as importações. É necessário pôr o argumento de ponta-cabeça: a redução gradual da proteção servirá de incentivo ao governo e ao Congresso para que tratem das distorções associadas ao regime tributário, ao controle de gastos públicos e à qualidade da infra-estrutura. O argumento relacionado à maior flexibilidade para acomodar produtos sensíveis, requerida pelas peculiaridades do Mercosul, também deveria ser colocado de ponta-cabeça. A Tarifa Externa Comum, passados 12 anos desde Ouro Preto, já não deveria comportar exceções. O que a Argentina e o Brasil estão querendo em Genebra é um 'visto bueno' multilateral para a inépcia demonstrada nos últimos anos quanto ao aprofundamento do Mercosul. Um acordo na OMC talvez possa servir de incentivo eficaz para que o Mercosul retome a seriedade perdida.

Uma redução tarifária que não fosse insignificante faria bem à credibilidade do governo Lula do ponto de vista econômico e melhoraria as perspectivas de crescimento do País ao reduzir o custo do investimento. Poderia ainda ser apresentada como resultado tangível e respeitável de política externa que tem sido quase sempre palanqueira. A despeito dos comentários vaporosos de autoridades brasileiras quanto à modéstia intrínseca dos resultados que possam ser esperados das negociações de Doha, é sempre bom lembrar que, no caso de fracasso, não há nada que garanta a manutenção do status quo. Só os interesses brasileiros nas disputas relativas ao algodão e ao açúcar recomendariam postura mais prudente das autoridades brasileiras quanto à OMC. O fracasso de Doha estimularia também arranjos envolvendo grandes protagonistas fora do sistema multilateral que, certamente, não seriam de interesse do Brasil.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio.