Título: Mudar FMI é desafio de novo diretor
Autor: Kuntz, Rolf
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/10/2007, Economia, p. B5
Strauss-Kahn terá de construir o Fundo Monetário do século 21
Construir o Fundo Monetário do século 21 será a missão do francês Dominique Strauss-Kahn, recém-eleito para substituir o espanhol Rodrigo de Rato como diretor-gerente da instituição. Ele assumirá o posto em 1º de novembro com um roteiro básico de reforma definido pelo Comitê Monetário e Financeiro da instituição e anunciado ontem. O comitê, formado por 24 ministros, funciona como um conselho representativo dos 185 países membros.
Strauss-Kahn chega também com idéias próprias sobre o papel do Fundo na economia globalizada e sobre como restaurar sua legitimidade política. O FMI foi criado nos anos 40 para dar assistência a países com problemas nas contas externas e para promover a estabilidade cambial. Mas um novo tipo de crise surgiu nos anos 90, num sistema financeiro muito mais complexo e muito mais integrado internacionalmente.
As taxas de câmbio ainda são importantes, mas 'nenhum esforço para garantir a estabilidade financeira pode ser considerado separadamente de outros fatores essenciais, como o papel dos fluxos de investimento, os novos atores emergentes ou os novos produtos estruturados', disse Strauss-Kahn em 20 de setembro, ainda candidato.
Para ser relevante nesse novo cenário, o Fundo tem de pôr mais foco na supervisão multilateral dos mercados, indo muito além do trabalho tradicional com governos individuais. Esta não é apenas a opinião de Strauss-Kahn. Essa orientação já foi incluída na agenda pelo atual diretor-gerente.
A reforma política é o segundo desafio importante. É preciso redistribuir poder entre os membros da organização, para refletir a nova importância das economias emergentes e dar mais voz também aos mais pobres. Legitimidade tornou-se uma palavra-chave, nos últimos tempos, na linguagem política do FMI e é um dos temas principais da estratégia de médio prazo desenhada por De Rato. A divisão do poder está associada à participação no capital do FMI.
Da cota dependem o poder de voto de cada país membro e seu nível de acesso aos financiamentos. Há várias fórmulas para o cálculo das cotas, mas de modo geral os fatores considerados são o Produto Interno Bruto (PIB), o volume de reservas cambiais, o comércio exterior, a variabilidade das exportações e o grau de abertura da economia.
O sistema em vigor envelheceu e a representação de muitos países ficou desproporcional ao tamanho da economia. O PIB brasileiro, no ano passado, foi mais que o dobro do PIB da Bélgica, com os valores convertidos em dólares pela fórmula corrente. Quando os valores são baseados na paridade do poder de compra, a diferença passa de duas para mais de quatro vezes, com pouco mais de US$ 1,6 trilhão para o Brasil e US$ 360 bilhões, aproximadamente, para a Bélgica. No entanto, a cota brasileira corresponde a 1,4% do capital e a belga a 2,12%.
Os emergentes pressionaram e o Comitê Monetário e Financeiro decidiu recomendar a atribuição de maior peso ao PIB na construção da nova fórmula. O comitê aceitou, além disso, a adoção de um PIB misto, calculado em parte pelo critério tradicional e em parte pela paridade do poder de compra, um critério usado habitualmente pelo Banco Mundial.
Falta muito trabalho técnico para a definição da nova fórmula das cotas e ainda haverá muita controvérsia política. Além disso, a mera revisão das fórmulas poderá ser insuficiente, segundo Strauss-Kahn. Na maioria dos casos, o acréscimo de alguns pontos porcentuais na cota será irrelevante em termos de poder. Talvez seja necessário, segundo o diretor-gerente recém-eleito, pensar num critério misto, baseado não só na divisão do capital. A reforma, no entanto, terá de ser votada pelos critérios atuais, e isso poderá limitar seu alcance.
A decisão deverá passar por três etapas. A Diretoria Executiva, formada por 24 representantes de países individuais ou de grupos, terá de aprovar por maioria um esboço de emenda dos estatutos. O passo seguinte será a aprovação da proposta pela Junta de Governadores (isto é, de ministros), ainda por maioria. Mas a aceitação final da emenda dependerá de um terceiro teste: terá de haver apoio de 60% dos membros com 85% do poder total de voto. Se um desses países não for os Estados Unidos, a emenda será derrubada, porque os americanos detêm 17,09% das cotas e 16,79% dos votos. A palavra final sobre a nova composição de poder do FMI será dada, portanto, pelo maior sócio de hoje, o único bastante forte para impedir sozinho qualquer mudança.
Mas é preciso, observou Strauss-Kahn recentemente, recordar as palavras do economista John Maynard Keynes na primeira reunião do FMI e do Banco Mundial, as instituições gêmeas criadas em Bretton Woods. O primeiro presente aos recém-nascidos, segundo Keynes, deveria ser um casaco multicolorido, 'como lembrança perpétua de que pertencem ao mundo todo'.
A agenda de Strauss-Kahn deverá incluir também um ajuste financeiro e administrativo do próprio Fundo, um tema já inscrito na agenda. Será preciso encontrar novas fontes de recursos e ao mesmo tempo cortar despesas. Strauss-Kahn já mencionou, como hipótese, alterações nos critérios de contratação e nos planos de carreira dos funcionários. O secretário do Tesouro americano, Henry Paulson, também mencionou, num discurso, a necessidade de rever a folha de pagamentos.
Por enquanto, o orçamento proposto por Rodrigo de Rato para os próximos três anos inclui uma redução real de 6% nas despesas da instituição. Para arranjar dinheiro, o Fundo poderá combinar várias soluções, como a adoção de uma nova política de aplicação de recursos e a venda de uma parte do ouro. O Fundo tem 103,4 milhões de onças (3,2 mil toneladas) de ouro, avaliadas em US$ 76,9 bilhões com base nos preços de mercado de 28 de setembro. O valor de balanço é muito menor - cerca de US$ 9,1 bilhões. Vendas de ouro têm ocorrido ocasionalmente, mas sempre com base em regras muito restritivas.
O Fundo está enfraquecido financeiramente porque a maioria de seus clientes tradicionais vai bem. Sem grandes empréstimos aos velhos tomadores, como o Brasil, a receita das operações diminuiu.
Strauss-Kahn fez carreira política na França como deputado pelo Partido Socialista e como ministro, primeiro de Indústria e Comércio Exterior (1991-93) e depois de Economia e Finanças (1997-99). Seu currículo inclui a privatização da indústria aeroespacial francesa e a preparação do país, por meio de um ajuste fiscal, para a adoção do euro.