Título: A lei fiscal em perigo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/10/2007, Notas & Informaçoes, p. A3
O governo federal prepara um projeto de lei que poderá afrouxar, perigosamente, a disciplina financeira do setor público, permitindo maior endividamento de Estados e municípios que já descumprem a Lei de Responsabilidade Fiscal. Pela regra em vigor, prefeitos e governadores são proibidos de tomar novos empréstimos, se as despesas com pessoal estiverem acima dos limites legais. Pelo projeto em estudo, essa proibição só valerá se os gastos acima do teto forem do Executivo e não de qualquer outro Poder - como se o mesmo Tesouro não custeasse também o Judiciário, o Legislativo e o Ministério Público, tratado na lei fiscal como um Poder da República.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, sancionada em maio de 2000, limita em 60% da receita corrente líquida os gastos com pessoal de Estados e municípios e em 50% os da administração federal. Há um teto específico para cada Poder. Nos Estados, 49% para o Executivo, 6% para o Judiciário, 3% para o Legislativo e 2% para o Ministério Público. No caso dos municípios, 54% para o Executivo e 6% para o Legislativo. No nível federal, os valores máximos são 40,9% para o Executivo, 6% para o Judiciário, 2,5% para o Legislativo e 0,6% para o Ministério Público.
Cada chefe de Poder é responsável, legalmente, pela observância do limite financeiro em sua área de atuação. A Lei 10.028/2000 estabelece multas para quem ultrapassar os tetos indicados na Lei de Responsabilidade Fiscal, mas até hoje foram abertos poucos processos pelos Tribunais de Contas (órgãos vinculados ao Legislativo) e nenhuma punição foi aplicada. A gestão fiscal no Brasil pode ter melhorado com essa legislação, mas ainda funciona precariamente. Na prática, tudo se passa como se a disciplina fiscal fosse obrigação apenas do Executivo.
O governo federal planeja propor, com o novo projeto, formas de garantir o enquadramento de todos os Poderes - e não apenas do Executivo - nas normas fiscais em vigor há sete anos. No fundo, a idéia é fazer pegar integralmente uma legislação que não pegou, ou que pegou apenas de forma parcial. A noção de que há no Brasil duas classes de leis - as que pegam e as que não pegam - foi formulada há 40 anos e forneceu material para muitos lances de humor. O período militar estava no começo. Esgotou-se, um novo regime foi implantado, o Brasil mudou em muitos aspectos, política, social e economicamente, mas a noção continua verdadeira.
O mais grave, no caso da gestão financeira, é que o próprio setor público desmoraliza as leis em vigor, limitando a sua aplicação ao Executivo e isentando de seu cumprimento os demais Poderes. Se isso for corrigido, o País ganhará.
Mas o resto do projeto é essencialmente um equívoco. A solução correta não é permitir o endividamento dos governos, se a violação dos limites de gastos com pessoal ocorrer fora do Executivo. Ao contrário do que sustentou o secretário do Tesouro, Arno Augustin, numa entrevista ao jornal Valor, essa regra, se adotada, resultará num afrouxamento da Lei de Responsabilidade Fiscal. O Tesouro é um só, em cada nível de governo, e o excesso de gastos não deixa de existir quando ocorre por culpa do Legislativo, do Judiciário ou do Ministério Público e não do Executivo. As conseqüências econômicas da indisciplina financeira, que justificaram a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, manifestam-se da mesma forma, seja qual for o órgão responsável pela irregularidade.
É preciso, portanto, agir para que as leis fiscais sejam plenamente eficazes. Isso ocorrerá somente quando todos os Poderes tiverem de assumir de forma completa e inequívoca a responsabilidade pela boa gestão das contas públicas. O resto é subterfúgio e só contribuirá para abrir mais uma brecha na disciplina financeira. A aproximação das eleições municipais do próximo ano torna recomendável uma cautela ainda maior no tratamento do assunto, para não se criar mais espaço para a gastança.
Se a indisciplina de algum Poder impede Estados e municípios de contratar novos financiamentos para obras importantes, é preciso que isso fique bem claro para a opinião pública e que os desvios sejam reprimidos. Qualquer estratégia de acomodação é inconveniente e é justo recebê-la, nas atuais circunstâncias, com muita reserva e até com desconfiança.