Título: Legalização do jogo
Autor: Oliveira, Maria Paula Magalhães Tavares de
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/10/2007, Espaço Aberto, p. A2

O projeto de lei que quebra o monopólio da Caixa Econômica Federal e autoriza os Estados a explorarem o jogo diretamente ou mediante a concessão a terceiros foi aprovado pela Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados. O projeto prevê aplicação da arrecadação no apoio ao esporte, na seguridade social e em outros programas sociais de interesse público, mas não menciona verba para tratamento de jogadores patológicos, campanhas de prevenção ou pesquisas na área. Na verdade, o projeto abre caminho para a legalização do jogo de azar no País e ignora a patologia decorrente dessa prática, o jogo patológico.

Sempre houve quem se excedesse em apostas, no entanto, o aumento de problemas associados ao jogo é recente e acompanha a maior oferta de jogos de azar. Pesquisas mostram o aumento simultâneo do índice de jogo patológico e de problemas associados na população de países que legalizaram loterias e outros jogos de azar, e há autores que afirmam ser o jogo patológico questão de saúde pública. Na Austrália, na Nova Zelândia, em países europeus e asiáticos, de 0,2% a 2,1% da população preenche critérios para jogo patológico. Estudos realizados nos EUA e no Canadá mostraram alto índice de problemas associados ao jogo. Em adultos, verificou-se que 5,5% da população apresentava problemas relacionados ao jogo; entre adolescentes e estudantes universitários, 13,3% e 13,9%, respectivamente. Há ainda estudos que destacam o subgrupo de idosos com alto índice de participação em jogos de azar e problemas associados. Apesar de escassos os dados nacionais, os números são alarmantes: pesquisa realizada com uma amostra da população de São Paulo encontrou 2,8% de jogadores patológicos e num bingo em São José dos Campos concluiu que 23,3% dos freqüentadores apresentavam a patologia.

Novas tecnologias agilizaram as apostas, sofisticaram os jogos, tornando-os mais rápidos, aumentando seu poder de atração e favorecendo a perda de controle pelo jogador. Há diferenças entre diversos tipos de jogos de azar, alguns com maior potencial de provocar dependência, dentre os quais se destacam os eletrônicos, que podem ser comparados ao crack em relação à cocaína. Não é sem motivo que 90% do faturamento das casas de bingo provêm das máquinas, e não do bingo tradicional, em que as pessoas assinalam os números em cartelas. Assim como o uso de drogas, a atividade de jogar é prazerosa. A aposta a dinheiro, o risco e a esperança de ganhar produzem excitação, bem-estar, euforia, não sendo à toa que o jogo patológico tem sido considerado uma dependência comportamental parecida com a química, apresentando até semelhanças neurobiológicas. Já foi descrita a presença de sintomas de abstinência em jogadores patológicos e estudo recente relata que a ansiedade experimentada por estes na ausência de jogo pode ser mais severa que a dos dependentes de álcool.

Jogadores patológicos perdem o controle sobre seu comportamento da mesma maneira que farmacodependentes. As conseqüências financeiras prejudicam toda a família, uma vez que a inadimplência no pagamento de contas repercute em todos. Entre esposas de jogadores foram observadas insônia e uma série de distúrbios relacionados a estresse, além de ser o índice de suicídios entre elas três vezes mais alto do que na população em geral. A repercussão do jogo patológico sobre o trabalho pode ser observada em atrasos, absenteísmo e falta de concentração. Em diferentes estudos se observou que entre 21% e 36% dos jogadores patológicos em tratamento perderam o emprego por causa do jogo. Dentre as atividades ilegais cometidas por esses jogadores se destacam empréstimos fraudulentos, falsificação de assinaturas, furto de dinheiro do trabalho, cheques forjados e outras atividades associadas a colarinho-branco.

Contrastando, todavia, com o surgimento de problemas associados ao jogo e com a constatação da patologia e de seus efeitos sociais e familiares negativos, tenta-se legalizar as loterias estaduais, abrindo brechas para exploração de outros tipos de jogo. Alardeia-se constituírem atividade de lazer, beneficente e inócua, procurando delas desvincular a imagem de jogo de azar. Procura-se associar a legalização do jogo a crescimento econômico, oferta de emprego, incentivo aos esportes e programas sociais, sem estimar o custo decorrente das conseqüências desse ato. O Estado combate o uso de drogas ilegais, não admitindo a hipótese de legalizá-las e, portanto, de arrecadar impostos e controlar a qualidade das substâncias utilizadas por dependentes. No entanto, para garantir arrecadação de impostos e evitar a evasão de divisas por meios ilegais, o projeto que visa a legalizar o jogo tramita em caráter de prioridade.

Não se fala em medidas de proteção ao jogador, em campanhas de prevenção ou em investimento na melhoria da qualidade de vida para que as pessoas não precisem apostar na sorte, com a ilusão melhorar sua situação. A população envelhece e faltam opções de lazer, serviços apropriados para a terceira idade. Freqüentadores de bingos poderiam, por exemplo, gastar em outras formas de entretenimento, estimulando novos negócios.

Outro aspecto negligenciado é o tratamento. Faltam recursos para treinamento de profissionais e implantação de programas de atendimento específicos para jogadores patológicos. Os dois únicos programas existentes não davam conta da demanda quando abundavam bingos e máquinas de caça-níqueis. Finalmente, para a elaboração de políticas públicas adequadas, pesquisas são necessárias. Fatores como distorção espacial de oportunidades de jogo (distancia mínima entre uma casa de jogo e outra), diferenças entre tipos de jogo e suas conseqüências devem ser avaliados.

* Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira, doutora em Psico- logia pelo Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP, fundadora do Ambulatório de Jogo Patológico do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Unifesp, é autora do livro Dependências: o Homem à Procura de Si Mesmo