Título: A vitória de Cristina
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/10/2007, Notas e Informaçoes, p. A3

Para alguns dos principais jornais de língua inglesa, a eleição de Cristina Kirchner é o início de uma forte dinastia política. Na verdade, Néstor e Cristina Kirchner apenas fizeram o que o fundador do peronismo experimentou em duas ocasiões. Na primeira, Juan Domingos Perón fez de sua mulher Eva, que jamais exerceu cargo eletivo, o símbolo do Estado assistencialista que implantou na Argentina. A carreira política da ¿mãe dos pobres¿ foi cortada pela morte prematura e, pouco depois, o ditador Perón foi apeado do poder por uma rebelião militar. Vinte anos depois, na década de 1970, a segunda mulher de Perón, Isabel, se tornou presidente da República com a morte do marido. Seu caótico governo foi caracterizado por uma luta armada entre facções políticas e terminou num golpe militar que resultou na mais sangrenta das ditaduras sul-americanas.

As tentativas de estabelecer regimes dinásticos, na Argentina, nunca foram bem-sucedidas. Precipitaram profundas divisões políticas e sociais num país cuja história institucional é marcada ora pela fragmentação do poder entre as províncias, ora pela concentração forçada de poder pela União. A sucessão de Néstor por Cristina não se faz, evidentemente, nas condições existentes nas décadas de 1950 e 1970, quando a violência política era a maneira de resolver os dissídios sociais e as disputas partidárias e ideológicas. Afinal, o último ciclo ditatorial deixou feridas profundas, que os argentinos não desejam reabrir.

A fantástica recuperação da economia argentina comandada por Néstor Kirchner tornou fácil a vitória de seu estratagema continuísta. Mas o eleitorado mostrou seu desagrado com a alternância de marido e mulher na Casa Rosada.

O fato de Cristina Kirchner ter sido eleita em primeiro turno, com cerca de 44% dos votos, não esconde o desapontamento crescente dos argentinos com a política. A evidência mais forte desse sentimento foi o comparecimento de apenas 72,75% do eleitorado às urnas, no domingo. Foi o menor comparecimento desde as eleições de 1928 (80,85%). Nos pleitos que se seguiram, nunca houve comparecimento inferior a 83%, sendo freqüentes os que se aproximaram dos 90%. Na cidade de Buenos Aires, que reúne o eleitorado mais politizado da Argentina, Cristina ficou em segundo lugar, com não mais de 23% dos votos - praticamente o mesmo porcentual que seu marido, Néstor, recebeu em todo o país, há quatro anos.

Com os olhos na eleição de domingo, Néstor Kirchner passou o seu governo desenvolvendo o que chamou de ¿política transversal¿, ou seja, a busca do apoio da centro-esquerda. Conseguiu a pulverização partidária, a ponto de haver 14 candidatos na disputa presidencial. Como observou o psicanalista argentino Marcos Aguinis, em entrevista publicada no Estado de domingo, ¿o kirchnerismo é, na verdade, a busca de concentração de poder de um grupo que não tem por objetivo a modernização do país¿. E, de fato, a maior parte dos votos de Cristina Kirchner veio das velhas clientelas peronistas e das camadas populares que foram as principais beneficiárias do assistencialismo oficial.

Se Cristina Kirchner não tiver habilidade para promover políticas sociais e econômicas que dêem coesão à nação, as divisões acentuadas pelo estilo autoritário de seu marido serão aprofundadas. Não foi à toa que o primeiro discurso da presidente eleita concitou os argentinos à união e ao esquecimento dos agravos. Ela terá maioria no Congresso, mas não entre os governadores. E será com eles que terá de se entender para implementar uma política antiinflacionária e cortar o déficit das províncias - condições essenciais para o equilíbrio fiscal.

Durante a campanha eleitoral, Cristina Kirchner apresentou-se como uma líder reformista, disposta a jogar pelas regras do capitalismo e da inserção da Argentina no sistema econômico e financeiro internacional. Mas garantiu que dará continuidade ao governo do marido. A mudança na continuidade nem sempre é fácil. Néstor criou um sistema protecionista e de subsídios e rompeu relações com o sistema financeiro internacional.

Para o Brasil, interessa que Cristina seja bem-sucedida. Isso significaria um novo impulso nas relações comerciais bilaterais e, mais importante que isso, um afastamento da Argentina da Venezuela de Hugo Chávez. Foi por desprezar a assistência financeira internacional que Kirchner atrelou a Argentina a Chávez.