Título: Aliados de hoje são as ameaças do futuro
Autor: Palacios, Ariel
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/10/2007, Internacional, p. A14

Mais uma vez, a política argentina apresenta-se como um hieróglifo quase impossível de se decifrar. A insólita novidade mundial de um matrimônio que se sucede a si mesmo no poder passando o comando do marido para a esposa confirma a vocação excêntrica dos dirigentes argentinos. Para onde vai a Argentina a partir de hoje? O que mudará na Casa Rosada sob liderança de alguém de saia e rouge? A deslumbrante presidente, por exemplo, fez uma campanha com promessas de ¿continuidade na mudança¿, um jogo de palavras ambíguo e malicioso como o tango, mas também astuto e pragmático como o peronismo.

O modelo impulsionado pelo casal Kirchner funcionou: ao longo de 4 anos de governo, os governistas duplicaram a porcentagem de votos e a macroeconomia segue dando argumentos para que o kirchnerismo siga sólido diante das críticas da oposição. Os resultados do domingo, no entanto, alertaram Cristina sobre o profundo desencanto dos grandes centros urbanos contra seu estilo e o do marido. Mais da metade da população da classe média para cima votou contra Cristina - e esses setores são os que determinam a opinião pública por meio da imprensa, com quem Cristina mantém uma relação de mútua desconfiança. Precisamente a esses argentinos, aqueles que não votaram nela, dirigiu seu discurso de vitória.

Apresentou-se humilde e conciliadora, com a cautela de um político que tem muito a perder se lhe complicarem a governabilidade. As classes média e alta que não a querem pressionaram para que o governo seja mais transparente e serão implacáveis, caso se repitam os escândalos de corrupção que mancharam a administração Kirchner em 2007.

Um desses casos de falta de transparência vincula-se à obscura relação econômica entre Venezuela e Argentina, um corredor por onde transitam valises com proteção diplomática. Atenta à imagem ruim que a relação Kirchner-Hugo Chávez tem Buenos Aires e outros centros, é provável que Cristina esconda seu parceiro de Caracas debaixo do tapete, ainda que siga aceitando a ajuda dos petrodólares bolivarianos - imprescindíveis para sustentar o frágil esquema de financiamento externo da economia nacional

Esse jogo duplo de sustentar a amizade escondendo o amigo responde também ao fascínio de Cristina por manter relações estreitas com os EUA. Desde que assumiu como primeira-dama, ela visitou regularmente Nova York e cultivou amizades que lhe aproximaram de Hillary Clinton, com quem Cristina sonha como aliada na Casa Branca a partir de 2008.

Equilibrando-se entre Washington e Caracas, Cristina não descuidará da relação com Luís Inácio Lula da Silva, com quem o casal K tem mantido uma amizade flutuante, embora sempre tenha dado valor a uma oportunidade de tirar uma foto no Planalto.

Na política interna, a nova presidente terá de decidir quanto poder (e dinheiro) dividirá com seus aliados para controlar a massa crítica de eleitores das classes baixa e média-baixa: o sindicalismo, os novos chefes ¿piqueteiros¿ e o tradicional aparato clientelista eleitoral do peronismo. Cada grupo tem sua própria política interna, que retornará cada vez mais explosiva com a aceleração do ritmo inflacionário.

Não parece que Cristina tenha receitas milagrosas para enfrentar a inflação nem se espera mudanças de curto prazo na relação peso-dólar. Quando a equação entre receita e gastos públicos crescentes tornar-se intolerável, a administração K lançará mão de uma saída de emergência que já deu resultado antes: aumentar a arrecadação no setor agroexportador, beneficiado por preços recordes no mercado global de commodities.

E Néstor Kirchner? Acredita-se que tentará tecer uma rede que dê sustentação política à mulher sem depender tanto do apoio peronista, que sempre é ingrato e costuma cobrar alto pelo apoio parlamentar.