Título: Escárnio à Justiça
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/11/2007, Notas & Informaçoes, p. A2

Foi o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal (STF), quem melhor definiu a atitude do deputado Ronaldo Cunha Lima (PSDB-PB) de renunciar ao mandato às vésperas de receber uma provável condenação, depois de se ter valido, por 12 anos, da prerrogativa de ser julgado (por um crime comum, de tentativa de homicídio) pela mais alta Corte de Justiça do País. ¿O ato dele é um escárnio para com a Justiça, em geral, e o STF, em particular. O gesto mostra como é perverso o foro privilegiado. Ele tem o direito de renunciar, mas o que ele quis foi impedir que a Justiça se pronunciasse¿ - disse o ministro Joaquim Barbosa, que foi o relator do processo, no Supremo, contra o deputado.

Realmente, trata-se de uma situação surrealista, de pleno deboche e colossal cinismo, especialmente expressos no texto da carta do renunciante, nestes termos: ¿Renuncio ao mandato de deputado federal, representando o povo da Paraíba, a fim de possibilitar que esse mesmo povo me julgue, sem prerrogativa de foro, como um igual que sempre fui.¿ É d¿escachar! Vejam-se os fatos: em 1993, quando era governador da Paraíba, Cunha Lima disparou três tiros em seu adversário político Tarcisio Burity, em um restaurante de João Pessoa. Burity sobreviveu ao atentado, vindo a morrer em 2003, de ¿morte morrida¿. Desde 1993 o ex-governador, réu confesso, tinha mandatos no Congresso - elegeu-se senador e, em seguida, deputado por duas legislaturas. Isso lhe garantia o privilégio de só ser julgado pelo STF - onde, segundo seus próprios ministros, os processos criminais se arrastam por falta de estrutura da Corte para atuar nesse campo, assim como por seu número reduzido de integrantes (11).

Mas, com a lentidão ¿do costume¿, o processo andou no Supremo e tudo levava a crer que seus ministros não acatariam o frágil argumento da defesa do réu, em torno da ¿legítima defesa da honra... do filho¿! O réu esperou o Supremo incluir a ação na pauta de julgamento de segunda-feira - 14 anos após a tentativa de assassinato e 5 depois de começar o processo - para renunciar ao mandato de deputado federal, livrando-se, assim, da cassação e da suspensão dos seus direitos políticos por 8 anos, punições previstas na Constituição para parlamentar que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. Com isso o processo contra Cunha Lima irá para a Justiça da Paraíba, recomeçando do zero, podendo lá durar mais uma década, ou quem sabe mais - enquanto jogado fora estará todo o trabalho do ministro-relator e demais componentes do Supremo, desde 1994. Além disso, como o deputado já está com 71 anos de idade, o prazo para a prescrição do crime estará substancialmente reduzido - já que esta ainda é uma das eficientes válvulas de impunidade contidas em nosso ordenamento jurídico.

Cunha Lima utilizou-se de uma estratégia que lhe facultou um direito, sem dúvida. O foro privilegiado em determinados casos - como em circunstâncias que submeteriam governantes ao alvedrio de desafetos espalhados pelo vasto território nacional, que poderia jogá-los num permanente inferno judicial - justifica-se plenamente. É de se presumir, além do mais, que ministros de tribunais superiores não sejam tecnicamente superados por juízes de instâncias inferiores, a ponto de estes terem melhores condições de exercer o poder judicante. Mas, quando se trata de um crime comum - tentativa de homicídio - cometido por réu confesso, o foro privilegiado se torna algo de perverso, a ponto de o ministro Joaquim Barbosa dizer, categoricamente: ¿O que tem de fazer é acabar com o foro. Só isso.¿

Uma coisa é certa, mesmo para os que admitem - como admitimos - o foro privilegiado em determinadas circunstâncias: esse sistema tem contribuído para aumentar a morosidade da Justiça, assegurar a impunidade de muitos criminosos com atuação na área pública e, sobretudo, manter na sociedade brasileira a melancólica sensação de que nem todos são iguais perante a lei - por belo que seja o princípio isonômico exibido pela ¿Constituição Cidadã¿.

Tem razão o ministro Joaquim Barbosa de considerar o ato de Cunha Lima um escárnio para com a Justiça. Mas o ato só foi possível porque o ordenamento jurídico brasileiro é um escárnio para com a nossa democracia.