Título: O STF honra a Justiça
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/11/2007, Notas e Informaçoes, p. A3

De maneira surpreendente, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) começam a reverter um dos maiores opróbrios da política brasileira, que é a renúncia ao mandato parlamentar para escapar ao julgamento, ou a fuga para a impunidade. A decisão do ministro Joaquim Barbosa, relator do processo em que o Supremo julgava o então deputado Ronaldo Cunha Lima, por tentativa de homicídio, de submeter à Corte a possibilidade de continuar o julgamento naquele foro privilegiado mesmo depois de Cunha Lima ter renunciado a seu mandato, poderá ser o passo decisivo para importantíssima decisão da Alta Corte contra manobras escusas visando à impunidade.

Quatro ministros já votaram pela continuação do processo e a votação foi suspensa por um pedido de vista, podendo ser concluída hoje. Mas a reação de indignação de todos os ministros ao ato de Cunha Lima sugere que a proposta será aprovada. Não é para menos.

Depois de ter-se beneficiado por 12 anos com a prerrogativa de só ser julgado no foro especial que é o STF - e isto porque em continuidade foi senador e depois deputado federal por duas legislaturas -, Cunha Lima teve o extremo cinismo de afirmar que renunciava ao mandato de deputado federal a fim de permitir que o povo da Paraíba o julgasse, sem prerrogativa de foro privilegiado! Quer dizer, resistiu a esse ¿julgamento popular¿ por mais de uma década, passando a aceitá-lo imediatamente quando seu julgamento entrou em pauta no Supremo - o qual dificilmente acataria o argumento básico da defesa, que se resume na estrambótica tese da ¿legítima defesa da honra... do filho¿.

A renúncia de Cunha Lima ao mandato foi considerada pelos ministros do Supremo como uma tentativa de ¿fraude¿ e um ¿abuso do poder¿ para evitar a condenação. Para os ministros ele tinha o direito de renunciar, mas não poderia fazer isso somente para impedir o julgamento do processo pelo STF, que havia sido marcado para segunda-feira. ¿Se fosse um ato praticado no início do processo, no meio do processo, eu não teria dúvida em dizer que seria absolutamente conforme a ordem jurídica¿ - argumentou o ministro Cezar Peluso. ¿Só às vésperas do julgamento ele veio a exercer esse direito (de renunciar), que eu entendo como uma tentativa de fraude¿ - enfatizou o ministro relator, Joaquim Barbosa.

O argumento utilizado pelos ministros do STF para manter o julgamento está na Constituição. Os ministros entendem que, depois de aberto um processo por quebra de decoro no Congresso, o parlamentar que renunciar ao mandato para tentar fugir da punição ainda pode ter os direitos políticos cassados. Por analogia, como afirmou Barbosa, o caso se aplicaria também para o julgamento de Cunha Lima, e mesmo com a renúncia o processo prosseguiria. Se prevalecer esse entendimento, o Supremo dá um solene basta ao tipo de chicana mais óbvia das que usualmente são praticadas, neste país, a serviço da impunidade. A prevalecer a tese de que a renúncia extinguiria o processo, todo o trabalho de 12 anos da mais alta Corte de Justiça do País seria jogado no lixo. O processo precisaria ser reaberto na Justiça da Paraíba - e sabe-se lá quantos anos mais precisariam transcorrer até que um juiz de primeira instância do Estado (por sinal governado pelo filho do processado Cunha Lima) pudesse julgá-lo.

Com a continuidade do julgamento do réu, mesmo após sua renúncia escapista, em caso de condenação e mesmo de prescrição, de um crime ocorrido há 14 anos, haverá uma suspensão dos direitos políticos do parlamentar por 8 anos - no caso em pauta, a serem contados a partir de 2011. Eis aí um importante trunfo para a completa recuperação da imagem da Justiça - já auspiciosamente iniciada com as recentes deliberações da mais alta Corte de Justiça do País, que constituíram verdadeiras lições para a classe política cabocla, a primeira das quais, o indiciamento dos mensaleiros, decorrente da aceitação do memorável relatório do mesmo ministro Joaquim Barbosa, foi verdadeiro marco histórico. As outras se referiram aos casos da fidelidade partidária e das greves nos serviços públicos.

Resta esperar que, com decisões desse quilate, o Supremo Tribunal Federal continue cumprindo rigorosamente seu papel e, assim, honrando a Justiça brasileira.