Título: Projeto de gastança
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/11/2007, Notes & Informações, p. A3
Governadores terão maior facilidade para tomar novos empréstimos, mesmo havendo irregularidades nas contas estaduais, se for convertido em lei projeto enviado segunda-feira ao Congresso pelo Executivo federal. Pelo projeto, os Tesouros estaduais ficarão livres de penalidades, se os limites de gastos com pessoal forem violados apenas pelo Judiciário, pelo Legislativo ou pelo Ministério Público, ou pelos três. A promulgação dessa lei poderá ser um passo para a completa desmoralização do conceito de responsabilidade fiscal.
À primeira vista, essa mudança da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) corrigirá uma injustiça. A maior parte do ajuste das contas públicas, nos Estados, tem sido suportada pelo Executivo. Mas toda a população é punida quando os demais Poderes gastam além dos limites com a folha de pagamentos: o governo estadual fica proibido de contratar novos financiamentos e, portanto, restringe os investimentos em obras de interesse público.
Essa primeira impressão é equivocada. O Tesouro é um só e o efeito fiscal não deixa de ocorrer quando a irregularidade é cometida pelo chefe de um Poder e não de outro. Há injustiça, de fato, mas é de outra natureza: todos os componentes da administração pública - Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público - deveriam contribuir igualmente para a manutenção da saúde financeira do conjunto, sem privilégio para um ou outro.
Segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, em quatro ou cinco Estados há claras irregularidades praticadas pelo Legislativo, pelo Judiciário ou pelo Ministério Público. Mas, se os cálculos forem refeitos com cuidado e alguns disfarces contábeis forem eliminados, o número sobe para 10 das 27 unidades federadas.
Se o projeto for convertido em lei, o resultado será muito mais que um benefício para governadores prejudicados pela má gestão de outros segmentos do poder público. Será um perigoso afrouxamento da Lei de Responsabilidade Fiscal, um dos mais importantes avanços institucionais das últimas duas décadas. Esse afrouxamento consagrará uma das mais graves distorções do sistema político e administrativo do Brasil: a divisão do setor público em duas grandes áreas - uma com responsabilidade fiscal, a do Executivo, e outra livre para gastar quanto possa, a dos demais Poderes.
Na prática, essa divisão tem prevalecido quase sem contestação. Quase tudo se passa como se só o Executivo tivesse a obrigação de cuidar do Tesouro, ficando isentos desse peso os outros Poderes. Independência dos Poderes, no Brasil, é interpretada como se a disciplina financeira, fora do âmbito do Executivo, fosse uma restrição aos encargos de legislar, denunciar, processar e julgar.
Para evitar a acusação de afrouxamento das normas, o Ministério da Fazenda anunciou estudos para elaboração de um segundo projeto, destinado a caracterizar como crimes as violações fiscais praticadas por juízes, legisladores e promotores. Além de caracterizar os crimes, o projeto fixará penas para os chefes do Judiciário, do Legislativo e do Ministério Público, pois a eles caberá a responsabilidade.
O envio do primeiro projeto, enquanto o segundo permanece em estudo, desperta desconfiança quanto à disposição do governo federal de impor a disciplina financeira a juízes, parlamentares e promotores.
Facilitar o endividamento de um terço dos governos estaduais pode ser um investimento político para o Palácio do Planalto, empenhado em desencalhar seus planos de maior investimento público. Enquadrar os chefes dos demais Poderes, de Estados e municípios, é menos importante em termos eleitorais - se não for simplesmente inoportuno. Para eliminar as distorções, o governo central deveria trabalhar, isto sim, pelo enquadramento completo de todos os Poderes - e por uma disciplina mais efetiva também para a administração federal.
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como de costume, escolheu o caminho politicamente mais fácil e com menor risco de atritos. Será apoiado, provavelmente, pelos governadores - e qual deles terá interesse, a partir daí, em cobrar igual disciplina para todos os Poderes?