Título: As drogas da vida pública
Autor: Mellão Neto, João
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/11/2007, Espaço Aberto, p. A2
Um dos votos mais equivocados que dei, nos meus dois mandatos de deputado federal, foi a favor da criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), em 1996. Só tenho a dizer, a meu favor, que, quando se está em Brasília, um parlamentar, por mais bem-intencionado que seja, acaba por se deixar levar pelas ondas da política e apóia, muitas vezes, projetos de lei que colidem frontalmente com as suas convicções doutrinárias e ideológicas.
A história da famigerada CPMF, no Brasil, é tortuosa e o grande e maior erro que se cometeu foi aprová-la pela primeira vez. Todo economista e jornalista bem informado sabe muito bem que um tributo, por mais bem-intencionado que seja e por mais transitória que seja a sua duração prevista, acaba se desvirtuando, tendo destinos que nada têm que ver com a proposta original e, por força das pressões da máquina pública, uma vez criado, as despesas do Estado naturalmente se amoldam a ele e este jamais deixa de existir.
Confesso que errei. Traí os mais fundamentais de meus princípios e diretrizes políticas e me deixei levar pelo canto da sereia do recém-inaugurado governo Fernando Henrique Cardoso e de seu incensado e admirado ministro da Saúde, dr. Adib Jatene.
As circunstâncias, então, eram as seguintes. Por força da Constituição de 1988, os serviços de saúde deixaram de ser prestados apenas aos segurados da Previdência Social e passaram a abranger todos os cidadãos brasileiros. Nada mais justo. Porém os constituintes se eximiram, espertamente, de criar fontes de recursos adicionais para fazer frente às despesas, que, automaticamente, dobrariam. O sistema de saúde, no País, estava quebrado e a causa disso era estrutural, ou seja, não se tratava de um déficit circunstancial. O fato era que a assistência à saúde custava aos cofres públicos, mês a mês, muito mais do que os recursos com que o Estado estava em condições de arcar. Urgia que se encontrasse uma solução efetiva e financeiramente consistente, sob pena de o sistema ruir sobre nossa cabeça.
Por outro lado, desde o início da década de 1990 crescia o apoio popular à tese do então chamado ¿imposto único¿. Tratava-se de um verdadeiro ovo de Colombo. Em vez dos mais de 50 tributos federais, estaduais e municipais que então existiam, propunha-se a cobrança de um único imposto, cuja base seria um porcentual da movimentação financeira de pessoas físicas ou jurídicas. A cada cheque emitido, a cada depósito efetuado, a Receita Federal cobraria, automaticamente, um pequeno porcentual de seu valor. A idéia, em princípio, parecia boa. Ela, na prática, acabava com a sonegação e com a evasão fiscal, abolia a economia informal e, ao fazer todos, indistintamente, pagarem, faria com que todos, ao final das contas, pagassem menos. Além do mais, a máquina estatal poderia economizar quantias imensas, antes destinadas aos seus aparatos de cobrança de tributos.
O dr. Adib Jatene, então ministro da Saúde, ao tomar conhecimento da idéia, passou a ser o seu principal porta-estandarte. Sua idéia era a de um imposto provisório sobre as movimentações financeiras cujas receitas seriam totalmente canalizadas para a área da saúde pública. O dr. Jatene, por sua biografia e sua reputação, emprestou credibilidade ao mecanismo e, como conseqüência, o Congresso Nacional, em 1996, aprovou a emenda constitucional que instituía a CPMF, que deveria, a princípio, durar apenas dois anos, ter as suas receitas totalmente vinculadas à saúde e uma alíquota que não deveria exceder 0,2%.
Ao votar a favor da CPMF, eu cometi, talvez, o meu maior erro. E até hoje me penitencio por isso. Primeiro, porque, como liberal convicto, eu não me cansava de pregar que o Estado, uma vez instituído um novo tributo, cria naturalmente despesas em igual valor e, assim, jamais pode abrir mão dele. Segundo, porque as finalidades alegadas, por mais nobres que sejam, acabam por ser desvirtuadas e o destino de boa parte dos recursos arrecadados acaba sendo outro, bem diverso do original. E, terceiro, porque as alíquotas originais acabam por ser majoradas, em função das premências de caixa do Tesouro.
Não deu outra. Criada em 1996, a CPMF foi prorrogada em 1999 e, novamente, em 2004. Sua alíquota, hoje, é de 0,38% e já se cogita de destinar partes elevadas de suas receitas para as funções mais diversas, muitas delas totalmente estranhas à saúde. Quando se fala em, simplesmente, extinguir a CPMF, o governo alega, não sem razão, que não conta com outra fonte, segura, de onde tirar R$ 40 bilhões anuais.
O grande erro, na verdade, está lá atrás. Nós, parlamentares, jamais deveríamos ter aprovado a instituição, mesmo que em caráter transitório, desse monstro em que se transformou a CPMF. Não é apenas este governo. Nenhum outro, seja de que partido for, poderá, no futuro, abrir mão desse tributo.
Pode-se aqui, em paralelo, estabelecer uma analogia com o famigerado e polêmico Fundo de Combate à Pobreza. O fato é que ele jamais deveria ter sido criado. Não promove, socialmente, os pobres nem estimula ninguém a mudar de vida. Corrompe, em suas raízes, todos os princípios da ética do trabalho. Mas, uma vez implantado, tendo uma clientela de nada menos que 11 milhões de famílias, que ninguém, sob que pretexto for, ouse sequer pensar em acabar com ele.
Tributos, de um lado, e projetos assistencialistas, de outro, são todos, na verdade, os opiáceos da política. Eles corrompem, eles viciam. Quem deles, inadvertidamente, faz uso jamais consegue, novamente, viver sem eles. Na política e na vida, o mais prudente a fazer é simplesmente evitá-los.