Título: Banco Central e Cade
Autor: Rocha, Bolívar Moura
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/11/2007, Espaço Aberto, p. A2

Resultará em novos contenciosos judiciais a anunciada disposição do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) de exigir que sejam submetidas à sua análise transações societárias entre instituições financeiras e de impor multas nos casos que no passado não lhe tenham sido comunicados. A notícia veio na esteira de decisão da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região segundo a qual o órgão não está vinculado ao parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que, em 2001, definiu que competia ao Banco Central, e não ao Cade, apreciar e aprovar fusões e aquisições entre instituições financeiras.

O provável contencioso se deve a duas ordens de razões.

Em primeiro lugar, um conjunto de ações da administração pública - a começar do próprio Cade - permitia às instituições financeiras supor que não estavam sujeitas à obrigação de submeter àquele conselho as suas operações. Há menos de um ano, em decisão do Cade relativa aos ativos não-bancários envolvidos em aquisição de controle de grupo financeiro, o conselheiro relator opinou que ¿eventuais riscos de limitação à concorrência estariam afetos apenas ao mercado bancário, cuja análise cabe ao Banco Central do Brasil¿ - voto este seguido pelos demais conselheiros, à unanimidade.

Por outro lado, as duas secretarias que instruem as transações submetidas ao Cade se têm abstido de emitir parecer nos casos envolvendo instituições financeiras, o que levou outro conselheiro, em outro processo, a comentar: ¿A SEAE (Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda) e a SDE (Secretaria de Desenvolvimento Econômico, do Ministério da Justiça) têm se declarado impedidas para se manifestarem nos atos de concentração apresentados por instituições financeiras, por força do parecer da Advocacia-Geral da União, que, aprovado pelo presidente da República, inquestionavelmente as vincula. Com isso, a análise de tais atos de concentração, no Cade, tem sido consideravelmente empobrecida, se não impossibilitada. Nesse quadro de incerteza jurídica e de falta de efetividade do entendimento fixado pelo Cade, não há como imputar às partes desses atos de concentração qualquer penalidade por apresentação intempestiva.¿

Por fim, a exposição de motivos com que o Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional, ao final de 2002, projeto de lei complementar disciplinando, com o fim de encerrar a controvérsia, a divisão de tarefas entre o Cade e o Banco Central explica que tal projeto propõe ¿conferir às autoridades responsáveis pela defesa da concorrência, em relação às instituições financeiras, as atribuições que já detêm com relação aos demais setores da economia¿. O texto é assinado pelos ministros da Fazenda e da Justiça. É, portanto, o governo a afirmar, textualmente, que entende não ter o Cade, sob a legislação atualmente em vigor, competência para analisar fusões e aquisições entre instituições financeiras.

A segunda ordem de razões diz respeito ao mérito da controvérsia e à discussão relativa à (in)existência de efeito vinculante do parecer da AGU com relação ao Cade. A recente decisão judicial sobre a matéria entendeu que, ao contrário do que sustenta o Banco Central, as regras da Lei Bancária que tratam de aspectos concorrenciais têm natureza de lei ordinária, não complementar, e por isso não prevalecem sobre as da Lei de Defesa da Concorrência. Trata-se de discussão técnica que exigiria mais espaço para seu desenvolvimento apropriado, mas basta aqui reter a noção de que esse entendimento é duvidoso e pode não sobreviver às próximas rodadas da ação judicial em que foi proferida a decisão comentada. Quanto à obrigatoriedade de observar o parecer da AGU, a Corte entendeu que conflitaria com o dispositivo da Lei de Defesa da Concorrência, que prevê que ¿as decisões do Cade não comportam revisão no âmbito do Poder Executivo¿.

Uma vez mais, é frágil o fundamento. Não se trata de revisão, pela AGU, de decisão do Cade, mas sim de exercício de competências que lhe confere a lei que rege suas atividades: ¿Fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da administração federal¿ e ¿unificar a jurisprudência administrativa, garantir a correta aplicação das leis, prevenir e dirimir as controvérsias entre os órgãos jurídicos da administração federal.¿ De qualquer forma, tem muito pouca relevância para a discussão mais geral o recente julgado: trata-se de decisão não unânime, adotada por uma das oito turmas de um dos cinco Tribunais Regionais Federais, sujeita a recurso ao próprio tribunal (já interposto), ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal. Decisão que, de resto, não produz efeitos perante terceiros, mas tão-somente entre as partes do processo em que foi proferida.

A questão substantiva subjacente à controvérsia é da maior importância. Discussões jurídicas complexas, como é esta, prestam-se a teses e argumentos brilhantes que, na mais longa tradição da profissão jurídica, tendem a eternizar o problema e afastar suas possíveis soluções. Banco Central, AGU e Cade deverão agora decidir se mantêm essa tradição ou se inovam e, com isso, convergem para soluções razoáveis que evitem aprofundar o processo de judicialização das decisões do Cade, de que se tem queixado a Procuradoria daquele conselho. Na pendência da aprovação do projeto de lei complementar mencionado, Banco Central e Cade deveriam definir, mediante convênio, os contornos operacionais de colaboração para a análise de atos de concentração relativos ao sistema financeiro - com isso tirando do papel esforço sobre o qual muito já se falou e escreveu e quase nada se fez.

Bolívar Moura Rocha é sócio e José Arnaldo da Fonseca Filho é associado sênior de Levy & Salomão Advogados. E-mail: bmoura@levysalomao.com.br

Links Patrocinados