Título: O drama da morte e o sentido da vida
Autor: Schere, Dom Odilo Pedro
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/11/2007, Espaço Aberto, p. A2

Há pouco foi comemorado o Dia de Finados; muitas pessoas foram ao cemitério, puseram flores nos túmulos e choraram a saudade dos familiares e amigos que já partiram desta vida; outros, simplesmente, recordaram e rezaram pelos falecidos.

Certamente, também houve quem tivesse ficado longe do cemitério por não sentir nenhuma atração por esse lugar, nem em Finados, nem em qualquer dia do ano; talvez até para não deixar vir à lembrança algum pensamento que incomoda.

Há uma estranha atração por esse lugar, que tem, ao mesmo tempo, algo de repugnante e de familiar. No cemitério, dia mais, dia menos, todos estarão em casa. Mesmo quem lá não pisa durante a vida inteira! Tinha razão quem mandou escrever em sua lápide sepulcral: ¿Hodie mihi, cras tibi¿ (¿Hoje toca a mim, amanhã, a ti¿).

Muitos já tentaram explicar a morte. Os povos, com suas culturas, filosofias e religiões, em todos os tempos, tentaram entender a morte e sugeriram atitudes coerentes para enfrentá-la. Também a ciência dá sua explicação. Porém o mistério permanece. A compreensão científica não fala do significado antropológico da morte, nem resolve a angústia humana diante da perspectiva do fim da vida. A morte é mais que a cessação das atividades vitais e permanece uma realidade terrível, que contradiz nosso desejo natural de viver e faz o ser humano experimentar sua mais radical fragilidade e limitação. As interrogações humanas sobre o sentido da vida e da morte não cessam.

Em mais de uma ocasião tive a missão de acompanhar de perto pessoas que faleciam: a situação sempre deixou em mim uma sensação de impotência extrema. O médico faz o que pode, o padre reza, os familiares choram; ao redor, vai-se fazendo silêncio, um silêncio de angustiante espera... Ninguém consegue fazer mais nada pela pessoa que está morrendo e ela fica entregue à própria sorte. Em nenhum outro momento da vida a solidão é tão absoluta; é a ruptura radical das relações com este mundo, com as pessoas e as coisas, com o espaço e o tempo.

A morte, certamente, constitui o momento mais intenso do nosso peregrinar por este mundo. Não é só o combate pela vida: é a pessoa que se defronta de maneira radical consigo mesma, com suas escolhas e com o sentido da própria existência. Esta pode ser a hora do fim de todas as ilusões e do desespero mais amargo; mas também pode ser o momento da aceitação incondicional da contingência humana, da cessação de toda soberba e auto-suficiência e do abandono confiante nos braços da Misericórdia onipotente.

A antropologia cristã traz ensinamentos luminosos para compreender essa realidade extrema: Deus é o ¿amigo da vida¿, que não deseja a morte eterna para suas criaturas. O ser humano é feito para a vida, e não para a morte, que não terá a última palavra sobre sua existência. A morte é parte do mistério da vida; não é o fim de tudo, mas a passagem da vida neste mundo para a vida em Deus. Na liturgia de Finados, a Igreja recorda e proclama: ¿A vida não é tirada, mas transformada e, desfeito nosso corpo mortal, nos é dado nos céus um corpo imperecível.¿

O cristianismo entende que a morte para este mundo é parte da dinâmica da vida e do mistério da existência. A morte e a ressurreição de Jesus dão a chave de compreensão do drama da morte: Ele nos precedeu na morte e, pelo poder de Deus, passou para a vida nova e transfigurada. Em Jesus Cristo, morto e ressuscitado, Deus revelou seu desígnio de salvação para a existência humana; Jesus Cristo participou da condição mortal de todos os seres humanos e todos podem ter parte na sua vida nova. ¿Se com Cristo morrermos, com Cristo viveremos¿ (cf. Rm 6, 8).

Esta compreensão da existência humana em nada contradiz o valor desta vida, que é um dom, o mais precioso que possamos ter; mas a vida neste mundo de realidades transitórias e contingentes não esgota toda a beleza, nem o sentido e as potencialidades da existência humana: nosso coração deseja mais e busca a plenitude da vida. A existência seria totalmente absurda se o clamor por vida, o mais profundo do nosso ser, não pudesse ser satisfeito e fosse apenas ilusão atroz. Somos chamados à vida plena, que não podemos dar-nos, por mais que o queiramos; assim como a existência neste mundo já é um dom gratuito, a vida eterna é um dom ainda maior da Providência onipotente.

Refletir sobre a morte pode ser angustiante, mas também salutar. A sabedora bíblica aconselha: ¿Ensina-nos a contar nossos dias e assim teremos um coração sábio¿ (Sl 90, 12). Quem encara a própria morte com sadio realismo e com fé em Deus encontra boas motivações para viver com discernimento e sabedoria todos os momentos preciosos da vida.

A fé cristã não desconhece a dramaticidade da morte e nada despreza da beleza da vida neste mundo. Mas entende a vida humana a partir de um horizonte de esperança, desvelando seu sentido esplendoroso. O ser humano é chamado a participar da vida em Deus, fonte do ser e da existência, para receber de sua misericórdia a plenitude da vida.

Nas flores depositadas sobre os túmulos expressamos nosso carinho pelos que já fizeram parte de nossa vida e não estão mais entre nós; mas também anunciamos nossa esperança na vida, esperança bonita que nem o drama da morte consegue apagar. A visita ao cemitério, por isso, também é uma ocasião para proclamar, com São Paulo: ¿Onde está, ó morte, a tua vitória?¿ (1 Cor. 15, 55). Nas orações que fazem e, sobretudo na celebração da Eucaristia, os cristãos anunciam a morte de Jesus Cristo, proclamam sua ressurreição e manifestam sua firme esperança de participar um dia, com Ele, na vida eterna.

Dom Odilo Pedro Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo

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