Título: Lições do destempero real
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/11/2007, Economia, p. B2

Que lições podem ser extraídas do incidente entre a Espanha e a Venezuela na 17ª Cúpula Ibero-Americana e suas reverberações? Mais numerosas do que sugeriria a vã filosofia, como mostram os desdobramentos desde então. As cúpulas ibero-americanas sempre conseguiram destacar-se como páreo difícil em relação a outras reuniões similares quanto ao caráter anódino de suas deliberações e conclusões. Nem mesmo como vetor político das empresas espanholas na América Latina parecem servir eficazmente. Um cínico poderia sugerir a premiação de Hugo Chávez pelo sucesso retumbante em chamar a atenção do mundo para a existência de tais reuniões.

A única figura a sair ilesa do ¿diálogo¿ hispano-venezuelano foi o presidente do governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, que, com dignidade, destacou o fato de seu predecessor José Maria Aznar merecer o respeito devido ao líder de um governo espanhol legitimamente eleito. O comportamento de Hugo Chávez, presidente da Venezuela, não foi, afinal, tão surpreendente. A boçalidade na sua forma de atuação rivaliza com a grotesca rusticidade da suas idéias, inclusive no exercício de influência com base na distribuição de benesses populistas de La Paz a Londres.

E, no entanto, em outro foro, respeitadas as normas usuais de convivência, a questão suscitada por Chávez é de grande interesse: qual foi mesmo a atitude espanhola - rei e Aznar - em relação à frustrada tentativa de golpe na Venezuela? Desde sua saída do governo, Aznar tem insistido em declarações que contribuíram, nas palavras de El País (1º/11), para ¿deteriorar a convivência interna e por graves e desnecessárias dificuldades para a Espanha no plano internacional¿. Quanto ao rei, que tem retrospecto de compromisso com a afirmação da democracia na Espanha pós-Franco, estaria assumindo indevidamente posição protagônica que ¿não facilita (o desempenho do papel) de moderação que lhe estaria reservado no sistema constitucional¿. Em suma, para que serve um rei destemperado?

E o Brasil com isso? Há quem pense que, em plano pedestre, a deterioração das relações entre Espanha e Venezuela à raiz do incidente poderia estimular investimentos espanhóis no Brasil, que, de outro modo, não se realizariam. Mas esta não é a implicação mais importante da movimentada cúpula. O incidente Juan Carlos-Chávez não apenas reiterou dúvidas quanto à possibilidade de manutenção de relações políticas e econômicas corretas com a Venezuela de Chávez, mas também ofuscou a percepção plena do fracasso da mediação espanhola para a solução das graves diferenças entre Argentina e Uruguai quanto à instalação de fábricas de papel em Fray Bentos, na fronteira entre os dois países, que a Argentina alega que poluirão o Rio Uruguai. A decisão uruguaia de permitir o início de operações da primeira planta resultou em aguda crise bilateral.

As implicações desses fatos para a política externa do governo Lula são extremamente relevantes. As novas prioridades, agora claramente explicitadas, são: ¿criar e liderar um bloco sul-americano¿, obter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e negociar regras internacionais que ¿não restrinjam o desenvolvimento do País¿.

¿Criar e liderar um bloco sul-americano¿ parece objetivo inalcançável. O protagonismo de Chávez põe na defensiva as pretensões brasileiras de liderança. Se o Mercosul é o embrião do bloco sul-americano que quer liderar, seria razoável que o Brasil se dispusesse a mediar a crise entre a Argentina e o Uruguai. E, no entanto, o Itamaraty se tem mostrado singularmente omisso. Com base neste retrospecto é difícil acreditar que o Brasil seja capaz de controlar efetivamente Chávez com a Venezuela integrando o Mercosul. O Congresso Nacional tem, portanto, oportunidade histórica de se mostrar guardião do interesse nacional e se opor à proposta imprudente do Executivo, impedindo a entrada da Venezuela no Mercosul. Mesmo que o presidente Lula ache que Chávez é tão democrata quanto Thatcher, Mitterrand ou Kohl, em declaração ¿espontânea¿ que nos faz refletir sobre terceiros mandatos.

Talvez a mais expressiva avaliação das possibilidades de sucesso quanto ao assento permanente no Conselho de Segurança tenha sido a implícita nas declarações do presidente Lula quanto a um Conselho de Segurança ¿do B¿, a despeito de sua alegada ojeriza à idéia de plano B. Fica a impressão de que alguém deveria explicar ao presidente o que é multilateralismo. A tradução de ¿negociar regras internacionais que não restrinjam o desenvolvimento do País¿, no jargão do novo Itamaraty, provavelmente se refere à liberdade de manobra para fazer ¿política industrial¿ e escolher vencedores sem limitações de regras multilaterais. E, no entanto, o G-20, liderado pelo Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC), enfrenta dificuldades em manter coesão em torno destas idéias.

Aumentar o volume das declarações bombásticas sobre política externa não vai disfarçar os seus pobres resultados, para não falar na duvidosa seleção de prioridades. É preciso autocrítica, explicitação de responsabilidades e reformulação de estratégia. Um recado claro do Congresso a Chávez, e a Lula, seria um bom começo.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor-titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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