Título: O dólar e o calote
Autor: Goldfajn, Ilan
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/11/2007, Espaço Aberto, p. A2

O dólar certamente não é mais o mesmo. Os investidores já não o querem. Os governos estão começando a virar a cara para ele. Os próprios chineses, seus fãs de carteirinha, também começam a torcer o nariz. Nem mesmo top models, como Gisele Bündchen, o aceitam mais. A moeda que costumava ser o símbolo da estabilidade e a referência do mundo está perdendo muito do seu valor.

Este ano, o dólar perdeu 7,4% do seu valor em termos reais (descontada a inflação) contra uma cesta de moedas de países que compõem o seu comércio. Nos últimos cinco anos, a depreciação acumulada já é de 22,5%. Qual é a conseqüência para o Brasil e para o mundo?

Para o cidadão comum, a conseqüência é que os bens importados (ou, de forma mais geral, os bens comercializáveis, aqueles influenciados pelo câmbio) ficaram mais baratos. Os investidores tiveram perdas nas aplicações atreladas ao dólar e temem perder mais.

De uma forma global, as conseqüências do declínio do dólar são: 1) Redução dos chamados desequilíbrios globais (déficit nos EUA financiado por superávit no resto do mundo), que levarão a um maior consumo, nos países em desenvolvimento, e a um menor, nos EUA; 2) perda nas aplicações dos estrangeiros nos ativos americanos, o que equivale a uma redução do endividamento americano. No curto prazo, a queda do dólar tem também as seguintes conseqüências: 1) As commodities internacionais, que são cotadas em dólar, sobem de preço para não perder valor em outras moedas; 2) a depreciação do dólar torna os importados nos EUA mais caros. Estes últimos dois efeitos dificultam o combate à inflação pelo Federal Reserve (Fed), o banco central americano, no momento em que este deveria concentrar-se no risco de desaceleração da atividade econômica (e, portanto, reduzir os juros sem preocupações).

Os EUA têm uma dívida com o resto mundo e têm consumido além dos seus recursos. O governo tem um déficit fiscal de US$ 169 bilhões ao ano, ou 1,2% do produto interno bruto (PIB) nos últimos 12 meses (foi 1,6% do PIB no ano passado). O país, como um todo, tem um déficit em conta corrente de quase 6% (ou US$ 792 bilhões). Esse déficit tem sido financiado pelos recursos advindos do superávit no resto do mundo. O acúmulo de déficits tem gerado um passivo externo líquido de quase US$ 2,6 trilhões, ou 19,25% do PIB.

Os economistas Gourinchas e Rey enfatizaram, em artigo, os ganhos patrimoniais para os EUA da queda do dólar, dado que toda a dívida americana é cotada em dólar e, ao contrário,70% dos seus ativos estão cotados em moeda estrangeira. Eles calculam que uma depreciação de 10% no dólar gera uma economia de aproximadamente 6% do PIB para os EUA.

A revista inglesa The Economist, no seu editorial desta semana, descreve essa depreciação do dólar como ¿o maior calote da história, tendo destruído um valor muito maior dos ativos dos estrangeiros do que qualquer país emergente no passado¿.

A depreciação do dólar também ajuda os EUA a ajustar o seu déficit. No passado recente, artigos acadêmicos, como o dos professores Obstfeld e Rogoff, calculavam que a depreciação real do dólar deveria ser até 40% dos níveis de 2002. Faltaria ainda uma depreciação de 17,5% para alcançar esse valor.

O declínio do dólar tem ficado mais intenso devido à desaceleração da atividade americana e à conseqüente queda dos juros nos EUA (a taxa de dois anos caiu de 5,1%, em junho, para 3,3%, atualmente).

A depreciação do dólar não tem sido uniforme. O diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Strauss-Kahn, disse, após a reunião do G-20 (grupo dos principais países ricos e desenvolvidos) do último fim de semana, que ¿alguns países têm sobre seus ombros uma parte do ajuste maior do que deveriam. É o caso do dólar canadense, do euro e da moeda brasileira¿. De fato, ante o euro, o dólar canadense e o real, a depreciação alcançou 10%, 15,7% e 18,1% este ano, respectivamente. Vários analistas prevêem que daqui em diante o dólar deve depreciar-se com mais intensidade ante as moedas que se mantiveram relativamente estáveis. Esse é o caso de algumas moedas asiáticas e de países petrolíferos que mantêm taxas de câmbio fixas.

Nesse contexto, há maior pressão para a China contribuir para o ajuste mundial, apreciando sua moeda. Recentemente, tem havido uma expectativa maior de apreciação - a moeda apreciou-se 4,9% desde o início do ano, mas o futuro de um ano embute, hoje, uma expectativa de 8,1%.

O risco da atual depreciação do dólar é que as perdas atuais levem a uma corrida para a venda de ativos americanos. Os dados do Tesouro dos EUA mostram que houve uma queda média entre julho e setembro de mais US$ 100 bilhões por mês na compra líquida de ativos americanos por estrangeiros. Se esse fenômeno persistir, ou piorar, a depreciação do dólar pode intensificar-se.

Em suma, a atual depreciação do dólar é um fenômeno que irá ajustar os desequilíbrios no mundo. O consumo nos EUA cederá lugar a um desejável maior crescimento do consumo nos países em desenvolvimento. Dessa forma, o mundo caminhará para déficits e superávits menores, o que é bem-vindo. O risco é um percalço nesse processo, já que a depreciação do dólar também tem gerado perdas para os detentores de ativos americanos (e ajudado a estabilizar a dívida americana). Uma fuga do dólar pode levar a uma depreciação maior e dificultar a atuação do Fed, que tenta suavizar a desaceleração da atividade por lá. Mas vale notar que a depreciação atual do dólar é um fenômeno mais duradouro e, no final do processo, saudável.