Título: Anéis e dedos
Autor: Werneck, Rogério L. Furquim
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/11/2007, Economia, p. B2

::

Aos trancos e barrancos, o embate em torno da CPMF vem obrigando governo e oposição a discutir questões fundamentais de política fiscal, que ainda há poucos meses pareciam ter sido relegadas a completo esquecimento. Mesmo quando os argumentos não fazem sentido, não deixam de ter um papel esclarecedor. Ajudam a perceber com mais nitidez o quanto o País ainda tem de avançar para dar encaminhamento mais conseqüente à difícil agenda fiscal que tem pela frente.

O governo parece ter afinal constatado que, para conseguir aprovar no Congresso a prorrogação da CPMF por mais quatro anos, vai ter de ir além da simples tentativa de ganhar no grito, matraqueando ad nauseam que não pode prescindir da receita adicional que a prorrogação propiciaria. Com a arrecadação federal crescendo mais do dobro da taxa de crescimento do PIB, o argumento parece a cada dia menos convincente. Mas o governo continua fazendo das tripas coração para tentar racionalizar a necessidade de prorrogação da CPMF no atual quadro de fartura fiscal.

No início desta semana, a equipe do ministro Mantega se saiu com um argumento do arco-da-velha. Alegou que, embora esteja de fato havendo aumento muito rápido tanto da carga tributária como dos gastos primários, isso não deve ser visto com preocupação, porque a carga tributária líquida imposta pelo governo federal não tem aumentado. Carga tributária líquida é o que se obtém quando se subtrai da carga bruta o montante de subsídios e transferências que o governo proporciona ao setor privado, por meio, por exemplo, do pagamento de benefícios previdenciários. O argumento é que, levando-se em conta o que o governo extrai com uma mão e devolve com a outra, a extração fiscal líquida não tem aumentado. E que, portanto, podemos todos dormir tranqüilos.

Ficarão certamente tranqüilos os que levarem o argumento a sério e, nele acreditando, constatarem que entraram em um mundo maravilhoso no qual ninguém se preocupa, por exemplo, com a evolução dos gastos da Previdência Social. Afinal, o governo poderá sempre continuar a aumentar a carga tributária bruta para fazer frente a qualquer elevação desses gastos, sem que a carga tributária líquida se altere. Nesse mundo, pouco importa se quem arca com o aumento de tributação não for exatamente quem se beneficia do aumento de gastos. Que tal disparate esteja sendo brandido como argumento sério, a essa altura dos acontecimentos, ilustra bem a distância que ainda separa boa parte do governo de uma percepção mais lúcida da real natureza do problema fiscal com que se debate o País.

Fantasias à parte, a tramitação da proposta de prorrogação da CPMF na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ), na terça-feira, deixou claro que a preocupação com a elevação da carga tributária e com a expansão desenfreada de gasto público atingiu até mesmo a parte não petista da bancada governista no Senado. O governo se viu obrigado a ceder alguns anéis para salvar os dedos. Mesmo recorrendo à truculenta substituição de alguns membros da CCJ, teve de concordar com a proposta de redução paulatina da alíquota da CPMF, de 0,38% em 2007 para 0,30% em 2011. No atual quadro de fartura fiscal, seria perfeitamente razoável que uma redução dessa ordem, ou ainda maior, já tivesse lugar em 2008, e não se arrastasse por quatro longos anos. Mas, de qualquer forma, o acordo marcou o abandono da idéia de se prorrogar a CPMF nas bases atuais.

O governo tem pouco mais de 30 dias para conseguir a aprovação, em dois turnos, da emenda da CPMF. E, para isso, terá de lidar com manobras de obstrução da oposição e conduzir com sucesso a delicada operação de salvamento de Renan Calheiros. Resta saber quantos anéis mais ainda terá de ceder. O próprio ministro Mantega reconheceu que a redução de alíquota concedida até agora é tão pequena que provavelmente não implicará queda de receita da CPMF nos próximos anos. Não representa restrição relevante à continuidade da gigantesca expansão de despesas primárias que o governo contempla para os próximos três anos. O ministro teve o cuidado de deixar mais do que claro que a imposição de um limite de 2,5% ao ano à expansão real do dispêndio federal, também acordada na CCJ, aplica-se apenas à folha de pessoal da União. Não ao restante do gasto primário. Por enquanto, o espaço para gastança continua assegurado.

*Rogério L. Furquim Werneck, economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio