Título: Amazônia, Kyoto e Bali
Autor: Kelman, Jerson
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/11/2007, Espaço Aberto, p. A2

A maioria dos cientistas acredita que o clima está mudando por causa das emissões de dióxido de carbono e de outros gases que causam efeito estufa, resultante da industrialização. Al Gore é o principal porta-voz desse grupo. Do outro lado há uma minoria que atribui as mudanças climáticas a causas naturais, e não à ação antrópica. Independentemente de quem detenha a razão científica, algumas medidas objetivas para diminuir a emissão desses gases, com repercussões econômicas, já fazem parte da realidade econômica de diversos países.

O Tratado de Kyoto materializa o compromisso dos países signatários de chegar a 2012 com um nível de emissão global 5% inferior ao que existia em 1990. Nesse sentido, foram estabelecidas cotas individuais de emissão para cada um dos ¿países desenvolvidos¿; para os ¿países em desenvolvimento¿ - grupo que inclui o Brasil - as reduções são voluntárias. Esse tratamento diferenciado é justificável: o acúmulo dos gases na atmosfera pela ação antrópica é resultado de séculos de atividade industrial dos países que largaram na frente e hoje são desenvolvidos. Não faria sentido impedir o desenvolvimento dos que largaram tardiamente, impondo-lhes restrições que só serviriam para manter o fosso da diferença de renda e bem-estar que separa os dois grupos.

Os EUA, apesar de serem os principais emissores, negam-se a aceitar limites porque o governo Bush rejeita as conseqüências que tal restrição teria sobre o estilo de vida de sua população. Já a União Européia aceitou o conceito das cotas e impôs limites de emissão a alguns setores industriais: cada indústria recebeu uma cota anual de emissão para o primeiro ciclo (2005-2007) e, se a ultrapassar, há uma multa de 40 euros (cerca de R$ 100) por tonelada de excesso.

A empresa, todavia, pode evitar essa situação crítica e adquirir o que lhe falta de três maneiras: 1) Compra direta de outra empresa que tenha excesso de cota; 2) compra em leilão organizado por seu próprio governo, que terá adquirido excesso de cota de outro governo; e 3) compra de Certificado de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), associado a algum empreendimento de país em desenvolvimento. Os créditos de carbono associados a projetos aprovados pelo MDL são vendidos no mercado europeu e em alguns outros, em particular o de Chicago, onde compram as empresas interessadas em melhorar a imagem com o grande público no quesito poluição.

O Brasil ocupa a terceira posição no ranking dos países que têm logrado aprovação de projetos MDL. Em termos de número de projetos certificados, não há grande diferença entre o Brasil e a China, a primeira colocada. Em termos de volume de carbono não emitido, contudo, o Brasil recebe apenas cerca de 20% do que cabe à China. Isso ocorre porque um projeto é elegível para receber certificação MDL se só for viável com a venda do crédito de carbono. Na China isso é relativamente simples porque a produção de energia depende essencialmente da queima de carvão e qualquer fonte alternativa emite menos carbono. No Brasil é mais difícil conseguir projetos aprovados pelo MDL porque já temos uma matriz energética bastante limpa, em grande parte por conta do uso intensivo da hidreletricidade.

Adicionalmente, o MDL não concede créditos a projetos que evitem ou diminuam o desflorestamento. Ao contrário da maioria dos países que têm no setor energético sua principal causa de emissões antrópicas dos gases estufa, a maior fonte no Brasil é o desflorestamento, principalmente na Amazônia, que responde por 75% de nossas emissões. Isso significa que, embora tenhamos uma matriz energética limpa, contribuímos expressivamente para o efeito estufa por uma prática - a queima de árvores - que não interessa aos brasileiros nem ao resto da humanidade.

Suponhamos que, ao contrário da orientação vigente, o Brasil aceitasse uma cota compatível com nosso atual nível de emissão e que nos fosse possível diminuir a taxa de desflorestamento, sem muito esforço, à taxa de 1.000 km2/ano. Isso seria traduzido em pelo menos 10 milhões de toneladas de carbono. Ou, ao preço unitário negociado hoje na Europa para o segundo ciclo (2008-2012), de R$ 50 por tonelada, essa opção implicaria uma renda anual para o Brasil de cerca de R$ 500 milhões, ao longo de pelo menos dez anos. Não é suficiente para causar uma modificação fundamental em nossa situação econômica. Mas também não é desprezível.

Considerando os instrumentos de gestão criados pela Lei 11.284/06, seria pequeno o custo para reduzir a taxa de desflorestamento, bem menos que os R$ 500 milhões por ano. Isso porque a lei admite que a União conceda áreas na Amazônia a agentes privados para a exploração sustentável de madeira e de outros recursos naturais, ao longo de décadas. Significa que o corte de árvores deve ser lento e pulverizado na área de concessão, de modo a permitir contínua recomposição. Com essa política se evita o que os economistas chamam de tragédia do uso dos bens comuns: quando não há regras de utilização de um bem coletivo, a tendência é que haja uso insustentável. A lei foi criada para reverter esse processo: a regra da concessão induz à sustentabilidade, na medida em que será do interesse do agente o bloqueio das atividades predatórias sob sua concessão.

No debate que ocorrerá em dezembro, em Bali, sobre a eventual imposição de cotas de emissão de carbono a países em desenvolvimento, o Brasil não deve tomar decisão ¿olhando para trás¿, em busca da punição das sociedades que historicamente causaram a alta concentração de dióxido de carbono existente hoje na atmosfera. Ao contrário, deve ¿olhar para a frente¿, em busca da avaliação de quanto pode ganhar ou perder com o estabelecimento de uma cota.

Há indícios de ganho.

Jerson Kelman é professor da Coppe-UFRJ, curador da Fundação Brasileira de Desenvolvimento Sustentável e diretor-geral da Aneel

Links Patrocinados