Título: Ares envenenados
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Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2007, Notas e informações, p. A3

Marcada para dezembro, a próxima reunião de cúpula do Mercosul será realizada num ambiente cada vez mais empestado - e não só pelo odor produzido na fábrica de celulose instalada na cidade uruguaia de Fray Bentos. Com muito vigor, os governos contribuem para tornar irrespirável a atmosfera sul-americana desde o Cone Sul até a zona caribenha. O governo do Uruguai fechou no domingo três pontes internacionais para impedir a passagem de manifestantes argentinos contrários ao funcionamento da papelera de capital finlandês. Com isso, deteve também, segundo o jornal Ambito Financiero, de Buenos Aires, cerca de 200 caminhões de vários países do bloco. Duas das pontes foram reabertas na segunda-feira, mas o ambiente continua envenenado e o governo brasileiro, até agora, não aceitou a função de mediador, embora tenha sido convocado para esse papel pelas autoridades uruguaias.

Os governantes do bloco terão de levar em conta, quando se reunirem no dia 18 de dezembro, em Montevidéu, muito mais que o conflito entre Argentina e Uruguai por causa da indústria de celulose. O ingresso da Venezuela no bloco foi aprovado pelos congressistas dos dois países, mas o assunto ainda não foi resolvido nos parlamentos do Brasil e do Paraguai. O Executivo brasileiro defende a aprovação, mas encontra resistência no Senado e terá dificuldade para discutir o assunto, nas próximas semanas, sem levar em conta as tensões entre a Venezuela e dois de seus vizinhos, a Guiana e a Colômbia.

O ingresso da Venezuela, segundo a presidenta eleita da Argentina, Cristina Kirchner, resolverá a equação energética da América do Sul, mas essa avaliação é claramente fantasiosa. A equação é muito mais complexa e envolve tanto as dificuldades de três grandes consumidores - Brasil, Argentina e Chile - quanto a insuficiência da produção boliviana e as dificuldades políticas do presidente Evo Morales, discípulo do venezuelano Hugo Chávez.

A posição pró-Chávez do presidente Néstor Kirchner e de sua mulher e sucessora reflete as dificuldades financeiras do Tesouro argentino. Sua dívida só tem sido rolada graças ao financiamento venezuelano. Se o governo argentino renegociar o débito com o Clube de Paris e conseguir um entendimento com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a influência regional de Chávez poderá diminuir. É um excelente motivo para o Executivo brasileiro apoiar o reingresso da Argentina no mercado financeiro internacional. Mas falta ver se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se dispõe a rever - contra as inclinações de seus estrategistas internacionais - sua avaliação do colega venezuelano, de sua democracia plebiscitária e de seu papel no Mercosul.

Objetivamente, a normalização do acesso argentino ao crédito internacional pode ser um fato de grande importância geopolítica, se contribuir para a redução da influência de Chávez. A presidenta eleita Cristina Kirchner tem dado sinais de ser capaz de aproveitar essa oportunidade.

Mas a agenda Brasil-Argentina envolve um conjunto importante de outras questões. Buenos Aires mantém barreiras a várias categorias de produtos brasileiros e espera-se de Brasília algum esforço para regularizar o comércio bilateral. Pelo menos no Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, há sinais de interesse na solução do problema. A disposição dos estrategistas do Itamaraty e do Palácio do Planalto não é tão clara.

O governo argentino, além disso, não desistiu de propor aos sócios do Mercosul, principalmente ao Brasil, a adoção de impostos sobre a exportação de produtos básicos. O ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, já se pronunciou contra essa medida, inteiramente contrária aos interesses comerciais do Brasil, mas a idéia parece atrair autoridades do Ministério da Fazenda e é considerada com simpatia por alguns ¿desenvolvimentistas¿.

Não se pode, portanto, menosprezar o risco de o governo brasileiro aceitar a proposta, ou por motivação política ou por um erro de avaliação econômica. O presidente Lula e seus principais assessores têm cedido a todas as pressões dos vizinhos para embarcar em aventuras insensatas, mesmo quando encena uma leve resistência durante algum tempo. A adesão ao Banco do Sul, uma iniciativa inoportuna sob todos os aspectos, ilustra bem essa tendência.

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