Título: Vida, paixão e (possível) fim da infecção pelo HIV/aids
Autor: Neto, Vicente Amato; Pasternak, Jacyr
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/12/2007, Espaço Aberto, p. A2

A infância da infecção humana pelos dois vírus da imunodeficiência humana, causadores da síndrome da imunodeficiência adquirida (aids), já parece bem elucidada por estudos genéticos de ambos (HIV-1 e HIV-2). O chimpanzé é o hospedeiro original do HIV-1, responsável pela imensa maioria dos casos da infecção e da doença que se segue. O HIV-2 provém do macaco verde africano. Sua passagem para a espécie humana provavelmente se deu pelo consumo de carne dos animais e talvez tenha sido recente na história evolutiva, nas primeira décadas do século 20. A enfermidade, admite-se, ficou muito restrita a pequenas aldeias africanas, onde o diagnóstico de algo deste tipo era extremamente difícil, dada a falta de recursos e de pessoal médico.

O que espalhou a moléstia foi a transição de um mundo paroquial, no qual cada um vivia apenas no local do nascimento, para um mundo global, no bom e no mau sentido: pessoas saíram da área de surgimento do mal para outras e, principalmente, ali ocorreram várias guerras, devidamente acompanhadas da entrada no local de soldados de diversas origens. Assim, soldados da África do Sul, de Cuba e muitos mercenários de todas as nacionalidades andaram por lá, tiveram relações sexuais e, a partir daí, o mundo foi invadido pelo HIV. O HIV-1 é muito mais disseminado que o HIV-2 e motiva doença que progride mais depressa; o HIV-2 ficou restrito à África Ocidental e a migrantes desta região para a Europa.

A vida do HIV é curiosa. A produção do microrganismo é muito grande, gerando milhões de genomas por dia, a tal ponto que a cada 24 horas se renova toda a população do agente causal. Trata-se de um vírus cujo material genético é RNA e tem poucos genes, entre os quais não constam os que presidem a formação das enzimas que corrigem os erros de transcrição, o que garante que em cada geração apareçam muitas variantes. Grande parte destas leva a vírus não-viável, mas, infelizmente, por isso mesmo, as variações genéticas garantem que vão existir muitas mutações, incluindo as resistentes a qualquer remédio, inventado ou por inventar. A doença costuma começar com uma fase aguda, que pode passar despercebida, e após um período de equilíbrio, com o vírus, estando o infectado assintomático; em cinco a dez anos, em geral, se desfaz esta harmonização pela progressiva perda das células com marcador CD4 e, quando o nível destas chega a 200, ou até antes, começam os sintomas relacionados com a aids. Um parasita inteligente, que queira sobreviver e passar sua descendência para a frente, não mata o parasitado. No caso do HIV, contudo, como a doença só ocorre bem depois e o atingido é contaminante a partir do início da infecção, este detergente não é relevante - o vírus tem cinco a dez anos para ser passado adiante antes do seu portador adoecer e morrer.

A descoberta do vírus, da fisiopatogenia do processo infeccioso e dos produtos anti-retrovirais é um capítulo brilhante na história da medicina. Isto também vale para os resultados do tratamento. Hoje oferecemos pelo menos 15 medicamentos com ação contra o HIV e pessoas bem orientadas, aderentes à orientação médica, podem esperar uma vida praticamente normal. Claro que os remédios motivam efeitos colaterais e o mais sério, no contexto, é que nenhum deles, isoladamente ou em associação, propicia solução definitiva - todos controlam em parte e devem sempre ser usados em conjunto. No verdade, logo que o vírus invade, estabelecendo-se no ácido desoxirribonucléico do hospedeiro, não é viável retirá-lo de lá, conforme o que conhecemos atualmente. Os recursos terapêuticos não dão cura, dão remissão - e o paradigma do tratamento da infecção pelo HIV lembra muito mais quimioterapia antineoplásica do que o de doenças infecciosas.

Por ser um retrovírus, os prognósticos quanto à obtenção de uma vacina não são bons. Não há vacina eficaz contra retrovírus em outros animais e por enquanto não é disponível imunizante benéfico para a espécie humana. Várias tentativas foram feitas, mas todas malsucedidas.

A expansão da epidemia só pode ser controlada por métodos educativos aptos a evitar comportamentos de risco. Na única situação que depende só de procedimento técnico - a passagem do vírus por transfusão de sangue e derivados -, o problema está praticamente resolvido e são raríssimos os casos dependentes de tal origem. Controlar a conduta sexual humana ou o uso de tóxicos injetáveis é muito mais complicado. Não e impossível: há evidências de que boa parte da população, devidamente informada, adota proteção e não adquire a infecção. Não obstante, fica outra parte, menos educada, mais propensa a arriscar - e nesta o vírus prolifera. Ainda mais, é muito difícil controlar a infecção pelo HIV em circunstâncias de extrema pobreza, como na África e na Índia. Guerras que destroem a coesão social ou condições ilustradas por mudanças rápidas e complexas, como as ocorridas na Rússia e na Europa Oriental, também fazem com que tenhamos populações absolutamente desprotegidas ou com serviços de saúde sucateados e, mais uma vez, nestas conjunturas a disseminação do HIV não é controlável. Mesmo no Brasil, se dispomos de êxito inegável no atendimento global, a todos os que precisam, e sem custos, não alcançamos o mesmo êxito em brecar a epidemia. Sim, a mortalidade por aids caiu pela metade em poucos anos e vai cair mais. Mas estudos mostram que a virose continua se espalhando e, ao que parece, está em ritmo menor.

Como vai acabar a inter-relação HIV/espécie humana? Acabará algum dia? Se houver adaptação, será no sentido de maior ou menor virulência do HIV? E se esta peste descobrir outra forma de propagação, que não seja das conhecidas? Teremos medicamentos capazes de curar a infecção algum dia? Vamos usufruir uma vacina convincente?

Permanecem muitos pontos sobre os quais nada sabemos ou apenas imaginamos cenários possíveis. Somos essencialmente otimistas: acreditamos que a ciência acabará por nos dar as melhores soluções para permitir uma convivência melhor com o HIV. Erradicá-lo, que é o que gostaríamos, será muito difícil.

Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak são médicos e professores universitários