Título: 'Não há gastança; estamos tirando de quem tem para dar a quem não tem'
Autor: Oliveira, Ribamar; Lu Aiko Otta
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/12/2007, Economia, p. B4

Ministro da Fazenda nega descontrole fiscal e diz que tudo o que se aplica em transferência de renda é devolvido à sociedade

O segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não é o da gastança, disse o ministro da Fazenda, Guido Mantega, em entrevista ao Estado. Ele admite que o governo, de fato, tem aumentado as despesas. Mas o crescimento se dá no Bolsa-Família e em áreas como educação e saúde. Com esses programas, diz ele, o governo está tirando dinheiro de quem tem para dar a quem não tem. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Na hipótese de não haver a prorrogação da CPMF, está em pauta reduzir o superávit primário?

Não. Não há plano B. Acreditamos na aprovação da CPMF. Não dá para brincar com isso e acredito que a oposição não queira fazê-lo. Sem a CPMF, é evidente a perda para a população, para os Estados. Em primeiro lugar, a saúde ficaria sem os R$ 24 bilhões adicionais. Depois, a educação, que hoje recebe R$ 21 bilhões. Vai para R$ 37 bilhões em 2010.

Como será feito o ajuste, se a CPMF for extinta?

Teremos de rever o orçamento de 2008, reduzir várias dotações e, principalmente, os acréscimos para saúde e educação. Vamos ter de desativar uma parte do PAC do saneamento. O PAC será remodelado. Haverá também encolhimento de recursos para os Estados. Não sei se os senadores se dão conta disso.

Mexer no superávit primário é um tabu? É algo que seria muito ruim para o País?

Seria. Estamos na seguinte situação: há uma certa deterioração da economia internacional. A crise do subprime se agravou nos últimos dias. Há um problema de escassez de crédito, que se alastrou. Eu tenho conversado com banqueiros, que me dizem que a coisa ficou mais feia. E dizem que o Brasil é um país diferente, seja porque o mercado brasileiro é mais saudável, seja porque o Brasil goza de uma reputação boa - graças, entre outras coisas, ao fiscal. Não aprovar a CPMF é pôr isso em dúvida. Por que vamos pôr em dúvida o nosso equilíbrio fiscal em um momento delicado da economia mundial? A crise do subprime continuará no ano que vem? Até agora não sabemos a dimensão total dessa crise. O Brasil só tem ficado isento dessa crise pela confiança que se tem no País, pela solidez das contas públicas, pela solidez da economia. Essa questão do petróleo nos coloca com capacidade adicional de pagamento que não tínhamos.

Como assim? Como é que o mercado mede a solidez do País?

Pela sua capacidade de pagamento. Nossa capacidade de pagamento, com a descoberta do campo de Tupi, aumentou muito. O pessoal já contabilizou: daqui a cinco anos, o Brasil vai duplicar sua capacidade de pagamentos. É como se, em vez de ter US$ 175 bilhões, US$ 180 bilhões de reserva, tivéssemos US$ 400 bilhões.

Quando o governo começou a negociar a CPMF com a oposição, especificamente com o PSDB, parecia possível a prorrogação, se houvesse concessões da lado a lado. Por que as conversas pararam?

Você precisa perguntar isso para a oposição. Eles colocaram cinco pontos que estavam sendo atendidos. Chegamos a reduzir a alíquota da CPMF, desonerar a pessoa física, colocar mais recursos na saúde. Eles é que resolveram não dar prosseguimento. Acredito que o que atrapalhou é mais a esfera política. Acho que entrou aí em campo uma ala mais radical da oposição, a ala do Fernando Henrique Cardoso (ex-presidente da República).

A informação que temos é que governadores da oposição, como os de São Paulo e de Minas, estão favoráveis à prorrogação.

Diria que todos os governadores estão favoráveis. Mas não sei se isso se traduz em votos no Senado. Governadores e senadores têm diferenças de interesses. O governador não controla diretamente as bancadas na Câmara e no Senado.

Por causa do clima azedo, o governo adiou o lançamento da nova política industrial. De quanto são as desonerações previstas?

Não vou falar.

Estavam falando em R$ 6 bilhões.

É chute. Quem sabe das desonerações somos nós. Mas eram desonerações importantes, que iam dar um estímulo adicional para o crescimento. Tivemos de prorrogar também o anúncio da reforma tributária. Ou seja, é só prejuízo. É a Fiesp dando tiro no pé. Ela, que seria beneficiária da política industrial e, portanto, da desoneração, está ajudando a não permitir que isso ocorra. Não haverá política industrial se não aprovar a CPMF.

O senhor diz que é um tiro no pé porque a Fiesp é das principais defensoras do fim da CPMF?

Exatamente. Ela puxou o cordão contra a CPMF, então é responsável. Não sei se toda a Fiesp pensa assim. Até acho que não, que é mais o seu presidente.

Em 2003, o governo fez um corte profundo de gastos.

Foi um corte de R$ 14 bilhões. Algo como 0,5% ou 0,6% do PIB. Agora, estamos falando em 1,5% do PIB, quase três vezes mais. É possível fazer um corte dessa dimensão? Não será só um corte. Poderemos usar também aumento de tributos que podem subir sem nenhuma autorização legislativa. Mas não quero falar nisso, porque acho que vamos sensibilizar os senadores para que eles aprovem a CPMF.

Que impostos poderiam aumentar?

Podemos usar o IOF , porque o IOF não tem limite. Podemos pôr alíquota de 2%, 3%, 5%, 10%. O IPI, a CSLL.

Será difícil de engolir mais um aumento de impostos.

Não é aumento. É uma forma de compensar parte de uma redução tributária de R$ 40 bilhões. A questão é que teremos um desenho triburário ruim. A CPMF é universal, se distribui de forma regular entre vários segmentos. Se não passar, vamos ter de usar determinados tributos que vão distorcer a estrutura tributária. Uns setores serão mais penalizados do que outros.

A oposição à CPMF não é uma reação da sociedade ao forte aumento dos gastos do governo nos últimos anos?

Não é uma reação da sociedade, pois ela tem aprovado este governo. O presidente da República se elegeu para aumentar investimentos, os programas de transferência de renda e os programas sociais. Ele se elegeu contra a tese do Estado mínimo, das privatizações. De fato, estamos fazendo mais gastos, mas eu nem chamaria de gastos, e sim de investimentos no social. No fundo, o que está por trás (da oposição à CPMF) são aqueles que querem o Estado mínimo. É o Paulo Skaf (presidente da Fiesp), que não se preocupa com os problemas sociais, que só quer desoneração. Já vimos como o Estado mínimo é ineficiente, ele foi praticado aqui no Brasil no governo anterior. A façanha deste governo é combinar mais gastos sociais com a melhora das contas públicas.

Que melhora?

O principal gasto do governo é com a Previdência Social. Mas olhe a curva do déficit da Previdência (Mantega mostrou um gráfico aos jornalistas). Chegou ao auge em 2006, está caindo e vai cair bem. De 1,8% do PIB (em 2006), o déficit vai para 1,5% do PIB em 2008. Este ano, o déficit será menor do que no ano passado em termos nominais. Já fizemos uma inflexão nas contas da Previdência. Temos hoje mais funcionários, mas as despesas com pessoal estão abaixo desde 2002 como proporção do PIB, e ficarão em 4,76% do PIB em 2008. A despesa de custeio está aumentando, mas aí são os programas de transferência de renda.

Mas claramente há um aumento das despesas primárias. O que as pessoas estão dizendo e os dados mostram é que as despesas crescem em ritmo maior do que o PIB há pelo menos 17 anos. Isso significa que mais e mais recursos estão sendo tirados da sociedade a cada ano para sustentar os gastos do governo. O que se coloca é: até que ponto isso é sustentável?

Se estamos aumentando a transferência de renda, tudo isso está sendo devolvido para a sociedade. Estamos tirando de quem pode pagar e entregando a quem não pode pagar. É contra isso que alguns trabalham. O Paulo Skaf trabalha contra isso, não quer pagar o imposto que usamos para fazer o programa Bolsa-Família.

Quando o senhor diz que as despesas da Previdência estão estabilizadas como proporção do PIB, está supondo que a economia continuará crescendo fortemente, que a formalização da mão-de-obra seguirá aumentando. E se esses fatores não se colocarem?

Isso é uma coisa que está conectada à outra. Quando se aumenta a transferência de renda para a população e o salário mínimo, é criado um mercado de massa. A massa salarial aumentou mais de 10%, e isso é gente consumindo. Se há consumo, as empresas produzem. Isso é ciclo virtuoso. A burrice dos ortodoxos é que eles ficam segurando a economia.

A crítica é que no primeiro mandato houve controle de gasto. O segundo mandato é o da gastança?

Não é o mandato da gastança. No primeiro mandato, tínhamos uma situação de escassez de recursos. O Estado fazia um investimento pífio. Agora, queremos investir. Não é gastança, ao contrário. Somos duros na queda para liberar despesa, tem reclamação contra nós, porque somos pães-duros. Agora: programa social, educação, saúde, aí não. Aí é a estratégia do governo. E o fundamental: olhem o resultado fiscal, Santo Deus! É o melhor possível. Podemos ter, em dois anos, um déficit nominal zero. Então teremos uma situação fiscal melhor do que a da França, que a da Itália.

Quem é: Guido Mantega

É ministro da Fazenda desde que Antonio Palocci deixou o cargo, em março de 2006.

É formado em economia pela Universidade de São Paulo e tem doutorado em sociologia. É professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.

Foi um dos coordenadores do programa do então candidato Lula nas eleições de 2002.