Título: Saneamento precário
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/12/2007, Notas e Informações, p. A3
É assustador o quadro do saneamento básico no Brasil revelado por um levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Apesar da importância de um adequado sistema de coleta e tratamento de esgotos para a proteção da saúde da população, sobretudo a infantil, menos da metade dos brasileiros (apenas 47%) dispõe desse tipo de serviço. Mas o que mais espanta nos dados da pesquisa não é a péssima situação por ela desvelada e que já era conhecida do governo e dos especialistas da área, mas, sim, o desinteresse das autoridades, em todos os níveis de governo, pelo problema. Mantido o ritmo da evolução da coleta de esgotos no País observado do início da década passada até hoje, só daqui a 115 anos o saneamento chegará a todos os brasileiros.
É por isso que a ONG Trata Brasil, para a qual foi feita a pesquisa da FGV, está iniciando uma campanha com o objetivo de expor a situação aos que mais sofrem com ela e organizá-los para que possam exigir providências das autoridades. Além da precariedade do sistema de esgotos do País, a instituição quer utilizar como fator de estímulo à população, para se organizar e procurar melhorar suas condições de vida, o fato de a ONU ter declarado 2008 o ano internacional do saneamento básico.
O que a nossa história recente mostra, porém, é desalentador. Nas últimas décadas, diminuiu o ritmo de expansão do acesso à rede de esgotos no Brasil. Na década de 1970, o número de domicílios atendidos por rede pública de coleta de esgoto cresceu ao ritmo de 1,5% ao ano. Na década seguinte, o ritmo caiu para 1% ao ano. Entre 1992 e 2006, baixou para 0,8%. O resultado é que, em 14 anos, o esgotamento sanitário evoluiu muito pouco. O acesso a esse serviço, que era de 36% da população no início do período, passou para os atuais 47%.
Isso faz do esgotamento sanitário o pior serviço público oferecido aos brasileiros. Como observou o coordenador da pesquisa, economista Marcelo Neri, o esgoto é o serviço que atinge a menor porcentagem da população, o que tem o o menor ritmo de ampliação e a pior qualidade percebida pela população, quando comparado com os serviços de coleta de lixo, de abastecimento de água e de energia elétrica.
É curioso que, num país em que o acesso a telefone celular e a computador cresce rapidamente, o acesso ao esgotamento sanitário esteja quase estagnado. Está praticamente esquecido pelas autoridades, porque não dá votos e é pouco reivindicado pelos que não dispõem dele, por desconhecimento da sua importância.
É compreensível que a demanda da sociedade por outros serviços seja mais intensa. Eletricidade, por exemplo, permite o acesso a bens como aparelhos eletrodomésticos que melhoram imediatamente a qualidade de vida das famílias. Já o esgoto não merece tanta atenção da população porque seus benefícios não são imediatamente perceptíveis. Ela entende o serviço como necessário para evitar a poluição, mas não como essencial para evitar doenças que atacam especialmente as crianças.
O estudo da FGV constatou que a taxa de mortalidade entre crianças de 1 a 6 anos que moram em locais sem coleta de esgoto é 32% maior do que entre as que dispõem desse serviço. E os meninos são mais afetados do que as meninas pela falta de coleta de esgotos. ¿Podemos concluir que os meninos têm mais atividades fora de casa, como jogar bola, empinar pipa, o que os deixa mais vulneráveis à poluição, por conta da falta de esgotos¿, diz Neri.
Há, ainda, um aspecto socialmente perverso na falta de coleta de esgotos: as famílias mais sujeitas a contrair doenças por más condições de saneamento são justamente as que menos dispõem de serviços de saúde pública. Ou, como diz o responsável pela pesquisa, ¿as pessoas sofrem duplamente - pelo fato de contraírem doenças e, depois, não poderem curar essas doenças de maneira adequada¿.
Os recursos previstos no Programa de Aceleração do Crescimento para o saneamento, de mais de R$ 10 bilhões, são um sinal positivo. Mas esse montante não passa de um terço do que a organização Trata Brasil considera necessário para evitar o agravamento do problema no curto prazo.