Título: Educação em escombros
Autor: Pfromm Netto, Samuel
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/12/2007, Espaço Aberto, p. A2

Mauro Chaves acertou em cheio no alvo em seu artigo Por que educação é a tragédia nacional (24/11, A2). No grande mundo da indústria e do comércio, quando uma empresa vai mal ou falta qualidade aos seus produtos e serviços e os consumidores os rejeitam, os dirigentes da empresa são responsabilizados. Os gestores são substituídos. Trata-se de evitar que a casa caia, de corrigir estratégias, diretivas, rumos e procedimentos. Não é o que vem ocorrendo na macroempresa educacional brasileira.

Herdeira de uma tradição balofa na qual imperam formalismos jurídicos, superficialidade e brutal ignorância dos fundamentos tanto científicos como práticos do fazer e do saber docentes, afundou-se mais e mais, nos últimos 40 anos, numa espécie de pajelança pedagógica, de ¿reflexões e ações¿ tisnadas de doutrinação político-ideológica anacrônica, submetida à imposição de modelos pedagógicos bonitos, mas que não funcionam, abandonados nos próprios países de origem. À balbúrdia conceitual e operativa se somam o palavreado oco e a desfaçatez, metidos todos numa espécie de dilúvio de insensatez e rebeldia romântico-doutrinária, sob as bênçãos do Ministério da Educação (MEC), das nossas universidades e dos órgãos governamentais ligados à educação. Nenhuma organização no mundo objetivo dos negócios, de produção industrial ou do comércio pujante de hoje em dia, seria capaz de sobreviver em meio a tantos disparates, a tanta incompetência provada e comprovada, tanta demonstração inequívoca do brutal despreparo dos seus responsáveis.

Neste estranho país do simulacro e do malogro monumental que se chama ensino público, principalmente no que se refere ao ensino que em outros tempos foi primário e secundário e é hoje conhecido como fundamental e médio, não é o que vem ocorrendo. Continuamos teimosamente apegados à discurseira jurídica rebarbativa, a uma tonelada de leis, decretos e portarias, de todo alheias às realidades de escolas que não ensinam, crianças que não aprendem, pais perplexos e aturdidos, queixas generalizadas a respeito do empobrecimento dos conteúdos, ruindade metodológica e deterioração das escolas, suas instalações e seus recursos. A incompetência se alastra como um gigantesco e destruidor tsunami no oceano da educação brasileira.

Afinal de contas, quando é que despertaremos desse pesadíssimo sono em que imperam a incúria e a discurseira estéril, desse pesadelo de dirigentes e dirigidos desqualificados, desse pedantismo de nariz erguido que não tem a mais remota idéia do que, na prática, no dia-a-dia da sala de aula, é e deve ser ensinar (e aprender), de fato, às crianças e aos adolescentes? Quando abandonaremos esses incríveis e pretensiosos Parâmetros Curriculares Nacionais, em parte responsáveis pelo descalabro que hoje atinge o ensino básico, feitos, ao que parece, por teóricos que jamais pisaram numa sala de aula para ensinar alguém a ler, escrever e contar?

Está na hora de limpar os estábulos de Áugias da nossa educação. Está na hora de refazer o nosso ensino, a partir de um quadro de referência lúcido, objetivo, realista e responsável, tal como se procede nos contextos comercial e industrial quando uma empresa vai mal. Uma organização que malogra nos serviços que oferece, nas vendas ou na produção industrial vai para o brejo: fecha as portas, pede concordata, declara falência, morre. Mas numa escola falida, num ensino público falido, tudo continua como antes. Tudo vai panglossianamente bem, no melhor dos mundos.

Não temos, nos arraiais do ensino público, uma macrocorporação solerte, dinâmica, competente e responsável. Não há um conselho de acionistas atentos e exigentes. Não há monitoramento responsável. Não existem bons gerentes, quer nos níveis superior e médio, quer na primeira linha e no nível operacional da organização. Falta planejamento autêntico, no sentido que se dá a esta palavra no mundo dos negócios. Faltam as tomadas inteligentes de decisão. Está ausente a direção efetiva. O estabelecimento e a observância de políticas sensatas primam igualmente pela ausência. Repetindo a velha lição de Fayol, em matéria de ensino público, aqueles que deveriam planejar, organizar, assessorar, dirigir e controlar apenas fingem que o fazem. Omitem-se, por incapacidade, por despreparo ou por incúria. Em vez disso, fazem belos discursos e mais discursos, dão entrevistas e mantêm rituais anacrônicos, enquanto a casa da educação brasileira implode. Abundam as altas autoridades, os mandões, os iluminados, os chefes e chefetes e os acomodados. Só não há líderes de fato. Só não existem gerentes eficazes na casa da educação, com um domínio das habilidades gerais e específicas que a imensa macroempresa chamada escola requer, para que funcione bem.

Se isto é ruim mesmo nos tempos em que imperam a estabilidade, a tradição e o conservadorismo, é muitíssimo pior no tempo e no mundo das novas realidades de agora e dos próximos anos, marcados por inovações e mudanças turbulentas: o mundo e o tempo da Terceira Onda dos computadores, da informação instantânea e confiável, dos rápidos avanços tecnológicos e científicos. Um mundo novo que, ao mesmo tempo, está às voltas com o preocupante agravamento de problemas e tensões sociais e com a deterioração da qualidade de vida, num contexto de aturdimento e de erosão dos fundamentos da vida verdadeiramente civilizada, da vida espiritual, da cultura autêntica e da própria condição humana.

Das outrora sólidas torres da educação só restam escombros. Urge realizar a ingente tarefa de refazer tudo. É tempo de reconstrução urgente, realista, inteligente do edifício educacional brasileiro.

Samuel Pfromm Netto, pedagogo, psicólogo, historiador e professor (aposentado) da USP, presidiu a Funtevê, do MEC, foi assessor da presidência e conselheiro da Fundação Padre Anchieta (Televisão e Rádio Cultura de São Paulo) e dirige a PNA - Pfromm Netto & Associados E-mail: pna@pna.com.br