Título: Licenças para a gastança
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/12/2007, Notas e Informaçoes, p. A3

O governo federal poderá gastar e endividar-se folgadamente, nos próximos anos, sem romper os limites que a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE) acaba de aprovar. Com limites tão folgados, ninguém precisa ter um mínimo de austeridade para respeitar as normas oficiais da responsabilidade fiscal. Segundo um dos projetos, a União poderá aumentar sua dívida líquida consolidada até o teto de 3,5 vezes a receita corrente líquida. Com base no outro, a despesa com pessoal poderá ter aumento real, isto é, acima da inflação, de até 2,5% ao ano, se o PIB não crescer menos que isso.

Alguns senadores celebraram as duas decisões como se representassem um compromisso com a boa política fiscal. Além do mais, a votação dos dois projetos na terça-feira, na CAE, foi mais que uma simples coincidência. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, havia prometido ao PSDB e a alguns membros da base governista adotar medidas para conter a expansão do gasto público. A contrapartida seria a renovação da CPMF.

Mas os dois projetos, na forma aprovada pela Comissão, correspondem na prática a uma generosa autorização para gastar e para endividar o Tesouro. A proposta de limitação do endividamento foi enviada ao Congresso em 2002. Enquadrando a União, complementaria a legislação de responsabilidade fiscal, destinada principalmente, no início, a disciplinar financeiramente os governos de Estados e municípios.

O limite recém-aprovado pela CAE poderia ter algum sentido prático no ano 2000, mas só uma vez, nos últimos sete anos, a relação entre a dívida e a receita se aproximou do teto. Foi no segundo quadrimestre de 2001, quando ficou em 3,4. No segundo quadrimestre deste ano estava em 2,1.

Na prática, instituiu-se uma folga para o governo se endividar. Um projeto adequado às novas condições das finanças públicas teria de ser mais severo, mesmo se considerando a hipótese de uma situação cambial menos favorável ao Tesouro, com o dólar voltando a subir com alguma rapidez.

Também o teto fixado para expansão da folha de salários e benefícios é alto demais. A proposta de um limite foi enviada ao Congresso no começo do ano, como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Na versão original, o crescimento real da folha poderia chegar a 1,5%. No Senado, esse limite foi elevado para 2,5%. Uma emenda acrescentou uma qualificação: o limite será igual ao crescimento do PIB, se for inferior aos 2,5%.

Respeitado qualquer desses tetos, o gasto com pessoal crescerá menos que nos últimos anos, mas é um exagero qualificar como austera essa nova política. Dada a experiência recente, a expansão da folha quase com certeza alcançará sempre o teto fixado - se pressões políticas não levarem o governo a encontrar, com ajuda de algum leguleio, uma fórmula para contornar a proibição.

Outra emenda ao projeto dos salários fixou um limite para o crescimento de gastos com obras, instalações, construções de novas sedes e reformas de prédios da administração pública. Esses gastos não poderão superar 25% do total das despesas de pessoal dos órgãos interessados. Isso evitará obras suntuosas, segundo o autor da emenda, senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE).

Mas a oposição não se contentou com as inovações, embora as tenha aprovado na Comissão. Como resposta, o ministro da Fazenda aceitou a fixação de limites para outros gastos de custeio na próxima Lei de Diretrizes Orçamentárias, válida para 2009. A fixação desses limites será "algo emblemático, independentemente do valor", disse o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR).

Limites emblemáticos não bastam para consertar as finanças públicas. Mas o fato mais emblemático é outro: a mera negociação de limites para a expansão dos gastos públicos, em troca da renovação da CPMF, mostra com absoluta clareza, para quem ainda tenha alguma dúvida, a concepção de política orçamentária do governo petista. Bom mesmo é gastar sem limites e sem critérios de austeridade. Se outra fosse a posição do governo, o controle da despesa seria parte de sua política e não moeda de troca para a renovação de um tributo de baixíssima qualidade - um dinheirão destinado, afinal, a sustentar a continuação da gastança.