Título: A bomba iraniana no limbo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/12/2007, Notas e Informações, p. A4

Em outubro de 2002, um relatório conjunto das 16 agências de espionagem dos Estados Unidos sustentava que o Iraque de Saddam Hussein prosseguia com os seus programas bélicos de destruição em massa. Em maio de 2005, documento de igual procedência assegurava ¿com alta confiança¿ que o Irã dos aiatolás estava ¿determinado a desenvolver armas nucleares¿. No início da semana, o governo americano divulgou um texto, da mesma natureza, que informa ¿com alta confiança¿ que no outono de 2003 ¿Teerã suspendeu o seu programa de armas nucleares¿. A primeira dessas estimativas de inteligência, como são chamadas, os fatos se encarregaram de reduzir a cinzas - mas àquela altura a invasão do Iraque, para a qual o relatório foi decisivo, já produzia efeitos calamitosos.

A assertiva tardiamente desmoralizada sobre os arsenais de Saddam continha um vício de origem, como se viria a saber - as pressões da Casa Branca por uma conclusão sob medida para a decisão muito anterior do presidente Bush de atacar o Iraque. É possível que a avaliação agora renegada sobre o Irã padecesse do mesmo mal. O fato é que vinha servindo para respaldar a nova escalada americana. Há menos de dois meses Bush advertiu que as ambições nucleares de Teerã poderiam desencadear a ¿3ª Guerra Mundial¿. Com isso, reforçou as especulações de que seria capaz de ordenar uma ação militar contra o Irã antes da eleição do seu sucessor, em novembro de 2008, invocando, talvez, os vetos dados como certos da Rússia e da China a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que adotaria um terceiro conjunto de sanções ao governo do presidente Mahmud Ahmadinejad.

Como a espionagem norte-americana descobriu agora que estava errada em 2005 e porque errou então, não foi explicado satisfatoriamente, e não é de esperar que o seja. Também permanecem obscuros os motivos que teriam levado o Irã a frear os seus planos de fabricar a bomba nuclear, sobre os quais não pairam dúvidas. Segundo uma versão, a interrupção teria sido imposta a Ahmadinejad pelas facções moderadas conduzidas pelo ex-presidente Hashemi Rafsanjani. De todo modo, o que conta na ordem das coisas são menos os erros ou os acertos, a boa ou a má-fé de avaliações da espionagem do que as suas conseqüências práticas. E, como escreveu um comentarista americano sobre esse caso, ¿raramente, se é que alguma vez, um único relatório dos serviços de inteligência modificou tão completamente, tão subitamente e tão surpreendentemente um debate de política externa¿.

A primeira vítima da mudança, como é óbvio, foi Bush - que, ao agitar o espectro de uma guerra mundial, já tinha conhecimento do parecer que o contradizia com tamanha contundência. Claro que não se deu por achado ao se ver desprovido do pretexto por excelência para desestabilizar o regime islâmico. ¿Quem diz que eles não podem começar um novo programa clandestino de armas nucleares?¿, argumentou. Mahmud Ahmadinejad está a léguas de ser um cordeiro, mas as palavras de Bush evocam as do lobo da fábula. Ele afirmou ainda que o Irã não pode dominar a tecnologia do enriquecimento de urânio, nem para fins civis, deixando escapar pela primeira vez, assinalou o New York Times, a premissa subjacente à sua política iraniana. Isso ajuda a entender por que a Casa Branca ¿nunca pôs na mesa um plano de negociações com o Irã que fosse ao que interessa àquele país¿, critica o especialista Flynt Leverett, ex-membro do Conselho de Segurança Nacional.

O relatório também tirou o gás das tratativas diplomáticas para os iranianos aceitarem limites aos seus projetos em matéria de combustível nuclear (o urânio enriquecido). Em visita ao Brasil, o diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), Mohamed El Baradei, reconheceu que o Irã foi de certa forma ¿vingado¿ pelas conclusões da inteligência americana. Enquanto essa for a percepção de Teerã, por que Ahmadinejad haveria de cooperar com a Aiea? Resta a vaga esperança de que, sob nova direção, os Estados Unidos despertem para a questão de fundo, abrindo negociações diretas com o Irã para a normalização das relações entre os dois países. Dos aspirantes à Casa Branca, porém, o único a defender essa iniciativa é o democrata Barack Obama.